Durban, 20 anos, e o sonho dourado de Rebeca Andrade

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Em 06.08.2021

Neste final de agosto completaremos 20 anos da Conferência de Durban contra a xenofobia e qualquer tipo de discriminação, que aconteceu de 31 de agosto a 8 de setembro na África do Sul. Neste mês estamos vivendo as emoções das Olimpíadas em Tóquio. Onde encontramos o ponto comum desses eventos?  Os dois trazem a proposta de integração de todos os povos e o respeito às diferentes formas de ser no mundo… Não posso deixar de relembrar meu encontro com a querida antropóloga doutora Sheila Walker lá em Durban em 2001. Participamos juntas de vários eventos e até de uma manifestação a favor dos indianos, numa passeata contra castas, entendidas como racismo.

Helena Theodoro e Sheila Walker em Durban, em 2001

De repente estávamos em plena rua, ao lado de manifestantes gritando contra as castas e cercadas pela polícia montada de Durban. Nosso sentimento de solidariedade e o entendimento da discriminação que sempre sofremos nos levou até lá. Nos abraçamos e continuamos no manifesto, certas de que estávamos cumprindo o nosso dever. Hoje, quando vejo um jogador de futebol como o Paulinho, em pleno jogo nas Olimpíadas de Tóquio, representar o arco e flecha de Oxóssi para festejar seu gol, além de escrever um louvor a Exu, orixá da comunicação e do movimento, em seu jogo de futebol, constato como estávamos certas em lutar junto com outros povos contra qualquer tipo de preconceito.

Muitos são os heróis dessa Olimpíada, seja no Brasil ou no mundo, mas podemos constatar que a comunidade preta faz parte desse grupo. Nossa Rebeca Andrade nos trouxe medalhas de ouro e prata em aparelhos e se declarou muito feliz com a vitória da ginasta americana na apresentação de solo. Que demonstração de humanidade e respeito ao outro!

Todos falam de sua altivez, perseverança, alegria e afetividade. Foi assim com Daiane dos Santos e agora com Rebeca Andrade. Importante frisar que as mulheres pretas têm uma ancestralidade forte e resistente. A história de suas tataravós embasa a força e ternura que exibem hoje. Nós, mulheres negras das Américas e do Caribe, temos uma história de muita luta e resistência. Fomos usadas de todas as formas possíveis e imagináveis, mas não perdemos a esperança em dias melhores e na capacidade de transformação que Exu sempre nos mostrou. A mulher preta sabe que é secreta, pois gera vidas e transforma o mundo, sendo ainda política por entender que pode superar os problemas e as dificuldades através do diálogo e não da guerra e que é, também, capaz de fazer de seu corpo um verdadeiro altar para a representação do mundo invisível.

Assim sendo secreta, política e sagrada, ganha o mundo, superando obstáculos, dores e rejeições. Em qualquer atividade que exerça consegue chegar a pontos de excelência e qualidade extrema, porque acredita na sua capacidade de transformar o mundo e de gerar beleza sempre. Sua alegria contamina tudo e todos, tendo um espírito liberto, livre de correntes e de limitações. As mulheres negras trazem em si o sentimento de esperança e liberdade, que as fazem pessoas que acreditam no futuro, em si mesmas e em seus filhos.

Rebeca nos prova a fé de uma atleta que passou por muitas dificuldades, por variadas operações no joelho, mas que nunca perdeu a fá em si mesma e em suas tradições. Essa ancestralidade preta, que superou tantos sofrimentos e privações acredita num mundo de harmonia e beleza, entendendo que ao perder um embate pode ficar feliz em assistir o sucesso de outra pessoa por reconhecer seu merecimento. Este caminho nos aponta, em momentos tão difíceis de pandemia, como surge uma luz no fim do túnel, como a humanidade pode crescer como pessoa, gerando emoções positivas e sentimentos louváveis mesmo quando existe derrota. Rebeca nos traz a esperança de um mundo mais humano e solidário. Nos ensina que perder também é ganhar em humanidade e em respeito ao outro.

Mais uma vez constatamos que as mulheres pretas transformam o mundo, como Ana Marcela Cunha, mulher negra, baiana, que nos deu a medalha de ouro inédita na maratona aquática. Temos duas mulheres negras brasileiras, mostrando a força de sua ancestralidade e resiliência. Elas nos remetem a ubuntu, palavra africana que pode ser traduzida por “Eu sou porque nós somos”, ao agradecerem as mães, como Rosa Santos, mãe solo de oito filhos, figura fundamental para a superação de uma série de lesões de Rebeca, a quem a atleta atribui sua força e equilíbrio.

Quando penso que em 2001 foi estabelecida a Declaração e Programa de Ação de Durban como uma agenda da comunidade internacional para combater o racismo e todas as formas de discriminação racial e que deu como resultado a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) como um órgão do Poder Executivo do Brasil ,criada em 21 de março de 2003 e extinta a 2 de outubro de 2015, lembro da abertura das Olimpíadas de Tóquio com uma japonesa negra acendendo a tocha olímpica. Estamos vivendo momentos difíceis para a comunidade preta que vem assegurando ao país medalhas na ginástica, no atletismo, no boxe, no futebol e na maratona aquática.

Nossa resistência se faz necessária para vencermos estes tempos de pandemia e de necessidade de apoio efetivo à comunidade preta, que é basicamente pobre. As Olimpíadas nos indicam o caminho das alianças e da luta mundial contra o racismo. Com meus amigos americanos aprendi que Hitler, o ditador alemão, se baseou na forma de tratamento dos brancos americanos em relação aos negros para estabelecer as formas de atuação contra os judeus. Hoje continuamos sofrendo perseguições e descrédito, mas estamos presentes em todos os lugares. Nossa capacidade de trabalho e criação nos possibilitou participar hoje de quase todos os países do mundo.

Temos negros italianos, turcos, japoneses, ingleses, franceses, indianos, belgas etc. Vamos aproveitar o espírito das Olimpíadas, chamar os judeus e todos os demais povos para fazer alianças em nome da preservação de nossa humanidade, seguindo o exemplo de atletas como Rebeca Andrade, a Daianinha de Guarulhos , que mostrou com quantas piruetas e delicadeza se cria um pais civilizado ao sair dançando um funk de MC João e uma tocata de Johann Sebastian Bach, mostrando como uma menina preta e pobre se livra dos grilhões das dificuldades e emerge gloriosa, com um sorriso e a certeza que a vida vale a pena ser vivida.

Bacharel em Direito e Pedagoga, Mestre em Educação, Doutora em Filosofia, Pós-Doutora em História Comparada. Pesquisadora da história e da cultura afro-brasileira, escolas de samba, religiões e espiritualidade de matriz africana, educação, processos culturais, sexualidade. Foi jurada do Estandarte de Ouro (Jornal O Globo) por vinte e sete anos. Foi Professora Auxiliar da Universidade Estácio de Sá, Coordenadora da Pós-Graduação de Figurino e Carnaval da Universidade Veiga de Almeida, Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) da FAETEC/RJ e Professora no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFRJ/UFRJ). Tem vários artigos e livros publicados – “Mito e Espiritualidade: Mulheres Negras”, “Os Ibéjis e o Carnaval”, “Caderno de Cultura Afro-Brasileira”, “Iansã, Rainha dos Ventos e Tempestades” e, o mais recente, “Martinho da Vila: Reflexos no Espelho”, em 2019. Atualmente é Presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Elas e Coordenadora do grupo de pesquisa de carnaval LUPA do IFCS/UFRJ.
Artigo publicado originalmente no portal Congresso em Foco.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Rebeca Andrade ganhou as medalhas de ouro e prata na ginástica artística em Tóquio e se tornou uma das principais estrelas do Brasil nas Olimpíadas – Ricardo Bufolin/Panamerica Press/CBG