Brincando como criança, mas sem inocência
Enildo Luiz Gouveia*
Em 12.08.2021
Lembro-me de um tanque de guerra que tive quando criança. Eu tinha verdadeira paixão por bonecos e carros que alimentavam o imaginário cheio de fantasias. Na época, não me ocorria que aquela brincadeira onde os mais fortes sempre venciam e eram representados por bonecos empunhando armas, musculosos ou ainda pilotando tanques de guerra ou veículos semelhantes, pudesse afetar o caráter de alguém. Diz um dito popular que “para conhecer o caráter de uma pessoa basta lhe dar dinheiro e uma arma”, dois símbolos do poder.
É sempre bom lembrar que não se exerce poder sobre os que são iguais na estratificação social. Para o exercício do poder, para o bem ou para o mal, é necessário que existam os que estão abaixo e, portanto, submetidos ao poder dos que estão em cima. No Brasil, o discurso de que todos são iguais perante a lei ainda é, na maioria dos casos, apenas discurso. Vemos isto, por exemplo, na ação repressiva das polícias, onde elas atuam de forma completamente diferente quando estão nos bairros nobres e quando estão na periferia. Consciente ou inconscientemente, as forças repressivas reproduzem o racismo social e estrutural da nossa sociedade. Outro exemplo é o acesso à justiça. Quem pode pagar advogados acessa com facilidade as normas e procedimentos jurídicos disponíveis, enquanto os que não podem pagar correm o risco de apodrecer nos cárceres, sem atendimento jurídico adequado. Diz outro ditado popular: “Pobre já entra na delegacia como culpado/condenado.” Pude comprovar isto recentemente, num caso envolvendo um familiar.
Voltemos à brincadeira de infância. Quando aquelas fantasias continuam na idade adulta, é preciso preocupação e até tratamento. Elogio apaixonadamente exagerado à força e suas representações são um traço preocupante que apontam para tendências autoritárias. No Brasil, as forças armadas e as polícias costumam se autoconsiderar acima do bem e do mal, acima das leis, justamente por deterem um dos símbolos do poder, ou seja, as armas. Evidentemente que não estão sozinhos. Juntam-se a estes, alguns magistrados, juízes e desembargadores. Ao povo, cidadão comum, resta-lhe obedecer acreditando que de fato tem o poder tão apregoado pela Democracia (Demos = povo; cracia = poder).
O atual presidente do Brasil é um dos melhores exemplos deste contexto. Suas fantasias são alimentadas por sua formação militar. Diversas de suas falas e ações tentam colocar a força militar como solução pra tudo, isentas de erros e corrupção, e como defensoras da liberdade democrática, algo historicamente sem fundamento algum. Trata as forças armadas e policiais como suas, podendo agir ao seu bel prazer, segundo seus interesses pessoais. Nada mais sintomático de transtorno ditatorial. Pena que tudo isto tem ecoado como música para uma parcela da sociedade.
*Enildo Luiz Gouveia – Professor, teólogo, poeta, cantor, compositor e membro da Academia Cabense de Letras (ACL)
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: brasil.elpais.com