A cultura do povo e o espetáculo das elites
Ivan Marinho de Barros Filho*
Em 23.06.2020
Quando a Festa da Lavadeira completou 20 anos e, apesar do camarote (pequeno câncer na face da entidade, talvez provocado pelo aquecimento global) instalado, não podíamos negar que ainda expressava uma manifestação única e cheia de diversidade. E quem superou os limites do racionalismo de castas e pôde perceber as nuances criativas dos mestres e brincantes em suas jornadas, pode concluir que o novo é inesgotável e requer pouco mais que sinceridade. Este conceito me remete a Van Gogh, que optou pela simplicidade temática dos retratos, paisagens e naturezas mortas, ou seja, coisas reais e comuns recebendo o tratamento de um espírito único. Único pelo esforço de olhar com seus próprios olhos. Esforço porque se tratava de alguém que acreditava na comunicação pela sensorialidade, ou mais, pela emotividade. Outros exemplos de criatividade podem preterir deste esforço, como o Egberto Gismont, que declara que as coisas lhe chegam naturalmente. Mesmo jogando, “gratuitamente”, as garrafas no oceano, o Egberto cumpre o desígnio revolucionário de olhar (ouvir) o mundo com seus próprios olhos (ouvidos). E quando naquela Festa, na praia do Paiva, víamos os mestres João de Goitá, Dié, Zé Duda, Zé Alfaiate, Selma do Coco, Salustiano entre tantos, do mamolendo, do maracatu nação e rural, do afoxé, do caboclinho, da capoeira, da cambinda, dos caretas, da cantoria… podíamos constatar a inesgotabilidade da criação, muitas vezes centenária, sesquicentenária, bicentenária… Para aqueles, condicionados e condenados a supervalorização de culturas estrangeiras, os taxados por Nelson Rodrigues de complexados vira-latas, as expressões daqueles mestres se confundem, são como se fosse uma só, e é uma só, mas dentro da diversidade. Não percebiam as diferenças nos timbres, nas inflexões, nas construções melódicas, nas variações rítmicas que determinam as jornadas temáticas, nas particularidades perceptivas das mensagens subliminares, mas familiares aos pertencentes… na idiossincrasia de quem deixa de fazer algo para viver algo.
Um dia desses, conversando com um gestor público responsável pela administração cultural de um governo municipal, ouvi a afirmação de que era preciso desenvolver ações “culturais” (referindo-se a cultura popular) além dos eventos de grandes shows que se apropriam de quase a totalidade dos orçamentos municipais neste setor. A partir desta observação dizia que os shows não eram Cultura, no que fui obrigado a contestar: Os shows são, sim, cultura. E são hegemônicos: a cultura do show, do espetáculo, do evento. Pode ser fútil e estéreo, pode ser superfaturado, mas é cultura.
Tornou-se comum ouvir pessoas comuns e até representantes públicos restringirem manifestações populares à cultura e isto, por incompreensível que pareça, é menos acerto que equívoco. Quando as manifestações populares, herdadas historicamente, são enquadradas no conceito elitista de cultura, reserva-se para elas a ideia de “coisas simples”, “infantis” e “anacrônicas”. Já para as elites papagaias, que mudou do Louvre pra Disneylândia, trocando Michelangelo pelo Mickey Mouse, é a insignificância conceitual pós-moderna que mais se aproxime do inacessível, da panaceia de complexidade vil, do rei nu, na análise de Afonso Romanno de Sant’Anna em seu magnífico Desconstruir Duchamp, que expressa a grande arte, a cultura superior.
Mas aquelas manifestações que pareciam nascer do barro na praia do Paiva, com os pés enfiados na lama, esfregando-se entre outras como se tudo fosse um só corpo, é o que nos interessa olhar. E o fiz como quem estivesse de fora, para observar o fenômeno e como quem esteve de dentro para vivê-lo, quando recitei poemas, puxei loas no Maracatu Nação Guerreiro de Oyó e em três anos fiz a abertura da festa com meus companheiros da Sociedade dos Bacamarteiros do Cabo, a SOBAC.
E o Eduardo Melo, com sua saudável intransigência, conseguiu preservar por muitos anos, mesmo com camarote, o espaço e espírito para estas manifestações que, mais, muito mais que espetáculos, são as expressões festivas de comemoração pela vida, criadas e vividas por nosso povo.
Imagine se aquela elite preconceituosa, que faz pose em Fundações, Secretarias, Institutos… conseguisse compreender esse fenômeno? Se depois do azougue, pusessem a gola, empunhassem a guiada e cortassem os abismos que os separam do êxtase de ser uma nação?! Se segurassem um bacamarte, depois de carregá-lo com passos ingênuos, para descarregá-lo num impacto que circunscreve o momento plenamente em si mesmo, revelando nosso DNA nordestino?! E tantas outras formas, que poderia citar aqui, os remeteriam àqueles momentos em que nos diluímos num coletivo e o coletivo se faz um pelas intenções coadunadas, elevadas pelo espírito de gratuidade.
Portanto, o frio olhar intelectual que enxerga naquelas manifestações uma coisinha bonitinha de quem não tem o que fazer, jamais poderá compreender o que é o sentimento de unidade social, ou mesmo cósmica, quando cada indivíduo é o todo e o todo é cada um.
*Ivan Marinho de Barros Filho é professor, especialista em Economia da Cultura.
Os textos aqui publicados não representam necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Ivan, seu texto é excelente para quem quer refletir sobre a importância das nossas tradições. Abraço.
Carlos Sinésio
Excelente. Eliane Guedes