A Marcha das Crianças de 1963

Por

Eduardo Pereira da Silva*

Em 14.10.2021

Como uma reflexão para este dia das crianças, 12 de outubro, vale a pena relembrar um episódio da história norte-americana que mostra o envolvimento de crianças na luta antirracista: A Marcha das Crianças de 1963.

Naquele ano, o Estado norte-americano do Alabama ainda vivia sob leis de segregação racial. O movimento pelos direitos civis já estava em plena atuação, embora ainda não tivesse recebido o apoio do governo federal e não estivesse obtendo os resultados desejados.

Manifestações pacíficas estavam sendo violentamente reprimidas pelas autoridades locais. Os manifestantes ainda corriam o risco de serem presos e perderem os seus empregos.

No dia 2 de maio de 1963, mais de mil estudantes, crianças e adolescentes, se reuniram junto a uma Igreja Batista, na cidade de Birminghan, Alabama, iniciando uma caminhada pacífica de protesto. A reação das autoridades locais foi violenta: prisões de crianças e adolescentes, uso de cães, jatos d´água e bastões contra os estudantes. Ainda assim, crianças e adolescentes continuaram a comparecer às marchas pacíficas nos dias seguintes. Há registros de prisões de crianças de menos de 10 anos de idade.

O evento mudou a postura da imprensa na cobertura dos protestos contra a segregação racial e forçou a entrada do governo federal, então sob a presidência de John F. Kennedy, na luta contra as leis de segregação.

Não foram poucos os que se opuseram à participação de menores em marchas deste tipo, ante o risco de exposição de crianças à violência policial. Enquanto Marthin Luther King deu apoio aos protestos, Malcolm X criticou a presença das crianças.

Há ainda registros fotográficos dos anos 50 e 60 de participação de crianças na luta antirracista naquele país, quando a Suprema Corte proferiu decisões pondo fim à segregação racial nas escolas existentes em alguns estados. Corajosas crianças negras foram selecionadas para estudar em escolas tradicionalmente voltadas para brancos. Elas tiveram que ser escoltadas para ingressar em suas escolas, enfrentando protestos da comunidade branca e, algumas vezes, a presença intimidadora de forças de segurança locais.

As fotografias da pequena Ruby Bridges, indo para a escola em Nova Orleans, Lousiana, em 1960, escoltada por agentes federais, e das estudantes negras de Little Rock, Arkansas, caminhando altivas diante de uma multidão enfurecida em 1957, podem chocar.

Para entender como crianças puderam se colocar nesse tipo de situação, é preciso compreender o ambiente de racismo e opressão que crianças negras viviam naquele país.

Tais episódios da história norte-americana devem nos fazer refletir sobre como o racismo impacta a vida das crianças negras e indígenas em nosso país.

Segundo o Anuário 2020 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2019, foram registradas mais de 4.900 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes de até 19 anos. É um número absurdamente alto, semelhante ao de países em guerra.

Mais de 10% dos assassinatos no país em 2019 foram de crianças e adolescentes. Os negros representam 78% das vítimas de mortes violentas intencionais de menores de 19 anos no país. E 14% das mortes violentas de crianças e adolescentes no país decorreram de intervenção policial.

Mãe, eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim. Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola?“. Foram essas algumas das últimas palavras de Marcos Vinícius, 14 anos, morto a caminho da escola, em região pobre da cidade do Rio de Janeiro, numa manhã de 2018, durante uma operação policial.

Infelizmente, histórias como a de Marcos Vinícius, a de João Pedro Mattos (14 anos, 20202, São Gonçalo-RJ), a de Ághata Félix (8 anos, 2019, Rio de Janeiro-RJ) não são raras em nosso país. Histórias como a de Lucas Matheus, 8 anos, Alexandre da Silva, 10 anos, e Fernando Henrique, 11 anos, desaparecidos juntos em Belford Roxo-RJ em 2020, não conseguem mais atrair tanta indignação.

Funerais de crianças se tornaram palco comum de protestos contra a violência que as atinge no país. E são tratados com certo desdém tanto pela imprensa quanto pela população em geral.

Não é difícil perceber que, em geral, as vítimas são crianças negras e moradoras de periferias.

É neste cenário que se naturalizou a divulgação no país de vídeos em que crianças se protegem de tiroteios enquanto estão na escola. Ou que se permite a divulgação de um vídeo por um Governador de Estado em um helicóptero, acompanhado de autoridades, exibindo armas apontadas para residências. Nesta mesma época, alunos de escolas de uma região pobre do Rio de Janeiro denunciaram que helicópteros policiais estavam atirando na direção da escola.

As crianças brasileiras estão extremamente expostas à violência e ao racismo da sociedade. A própria escola, que deveria ser um espaço de acolhimento e conforto, às vezes, se torna um ambiente de intolerância e exclusão, com profissionais despreparados para lidar com agressões contra negros e adeptos de religiões de matriz africana.

A Lei 10.639/2003 determina o ensino da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Mas quase vinte anos após sua promulgação, ela continua sendo ignorada por grande parte do sistema educacional brasileiro.

Não dá para se pensar em qualquer projeto de desenvolvimento do país que não inclua políticas públicas de proteção à infância, inclusive por meio do sistema educacional, do sistema de justiça e do sistema de saúde.

Estes últimos, aliás, estão sob silencioso ataque pelas tentativas de subfinanciamento e corte de gastos, sem profunda análise de seus efeitos, e em detrimento de gastos que não deveriam ser prioridade em um país que não está em guerra (como os gastos militares).

Há evidentes tentativas de fragilizar a proteção dada aos menores pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, mas pode ser por meio de silenciosas disputas pelo orçamento que se pode deixar nossas crianças mais expostas à violência e ao racismo.

A luta antirracista deve dedicar um especial capítulo para as crianças.

*Eduardo Pereira da Silva é juiz federal em Goiânia.

Artigo publicado originalmente no portal Justificando (Coluna Vozes Negras).

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Justificando