O Canto Livre de Nara
Miguel Paiva*
Em 13.01.2022
Confesso que fui um dos que achava que Nara Leão cantava mal, que era desafinada. Depois de um tempo refiz meu julgamento e passei a curtir a Nara como ela era. Forte, apesar de parecer frágil, potente, apesar de insegura e militante, apesar de vir da classe média de Copacabana. O documentário O Canto Livre de Nara, da Globoplay ajuda a entender esse fenômeno. Nele vemos, por exemplo, o quanto a Nara passou pelos diversos movimentos da nossa música. Começou antes da bossa-nova, mudou para o samba, inaugurou a MPB e acabou naquele lugar onde o que você cantar está legal. Além disso mostra um Rio meio mágico, moderno, vivendo uma era de crescimento, de afirmação democrática e de grande criatividade.
Na época em que criticava Nara ainda não havia desenvolvido em mim o chamado senso crítico alternativo. Era um purista que jamais aceitaria, por exemplo, Nara gravar Roberto e Erasmo num lindo disco. Mas que bom que isso acontece e passa. A Nara política do show opinião, do Zé Kéti, do João do Vale é a Nara que cabia perfeitamente nela, naquele momento da nossa história. Com isso ela desloca aquela classe média pequeno burguesa para a realidade das favelas e do interior do Brasil.
O documentário nos mostra uma Nara sempre avançada, sempre moderna e muita vezes segregada por conta disso. Ela não ligava muito, mas era evidente o que acontecia. A Nara do samba também me faz tentar entender o que houve com o Rio de Janeiro.
Naqueles anos 60 o Rio era a Zona Sul que dividia o espaço de cidade com o subúrbio e a zona norte. Isso incluía a Mangueira, as favelas e o resto da cidade de origem pobre que convivia com a dita cidade rica. O que acontecia de fato? Não tínhamos informação sobre a zona norte? A zona norte e as favelas faziam parte de um folclore que esses artistas fizeram existir? A grande imprensa filtrava as informações e só líamos sobre o lado bom de tudo.
Nara e o espetáculo Opinião, além de terem sido politicamente importantes, abriram uma espécie de Túnel Rebouças, antes mesmo do túnel em si, para o que acontecia do outro lado do Corcovado. E mais, abriu a estrada para o resto do Brasil, completamente ignorado pela burguesia dominante, seja ela autoritária e fechada com o regime militar, ou bem pensante, morando na zona sul e cantando João Gilberto.
Mas o que aconteceu com o Rio é o que mais me intriga. Essa divisão ficou mais acentuada justamente depois do regime militar. Os pobres foram recolocados nos seus lugares de origem e o país foi preparado para ser conduzido e saboreado pelos ricos.
As favelas já delimitavam essa diferença e passaram a ser, depois de conduzidas e estabelecidas bem longe da zona sul, como uma espécie de campo de concentração da classe trabalhadora. Mas a arte acabou sendo mais forte e quebrando essa barreira. O Rio meio que se entregou a esse comando miliciano, mas a arte resistiu nas favelas, nas escolas de samba e hoje nas periferias.
A internet instrumentalizada ajudou a divulgar e ao mesmo tempo demonizar o que vinha de lá. O funk é o retrato de um Brasil pobre e orgulhoso. O samba resiste sempre ameaçado pela institucionalização e a nossa história vai sendo contada, e ainda bem, para que possamos ter na memória o que de fato aconteceu.
Numa época que o documentário Get Back sobre os Beatles vira fenômeno de audiência e nos ajudar e recompor essa memória, assistir O Canto Livre de Nara também ajuda. Eu, na época me aventurando com meu amigo e parceiro Zé Rodrix na carreira de compositor, fiquei extremamente feliz ao saber que uma versão que havíamos feito para um sucesso dos irmãos Gerswhin, Someone to Watch Over me, seria gravado por Nara no que acabou sendo seu último disco, My Foolish Heart, onde ela só cantava versões para grandes sucessos americanos. Eu e Zé estamos lá com “Alguém que Olhe Por Mim”. Muita alegria que até hoje me emociona.
*Miguel Paiva – Cartunista, diretor de arte e ilustrador além de jornalista, comentarista e autor de teatro, cinema e televisão.
Crônica publicada originalmente no portal Jornalistas pela Democracia.