A denominada música gospel não é nosso patrimônio
Enildo Luíz Gouveia*
Em 13.01.2022
Sei que muitos irão chamar este texto de cristofóbico, adjetivo extremamente apelativo e sem qualquer embasamento real. Outros irão dizer que é “inveja”, visto que também componho e canto músicas de cunho religioso sem, no entanto, ser conhecido do grande público.
Na verdade, o presente texto visa única e exclusivamente esclarecer o que, para mim, é algo absolutamente sem sentido e cujo objetivo é apenas político-eleitoral. Recentemente, a Câmara dos Vereadores do Recife aprovou o projeto do vereador pastor Júnior Tércio (PODEMOS/Recife), que torna a música gospel patrimônio imaterial do Recife. Tal projeto foi sancionado pelo prefeito João Campos no dia 09 deste mês.
Pois bem, quais os critérios para que um determinado gênero ou movimento musical/cultural possa ser considerado patrimônio imaterial? O primeiro e mais importante acredito que seja o local de origem. E aí temos a primeira aberração do projeto aprovado. O termo gospel é inglês e significa Evangelho. Também é utilizado para designar o estilo de música que surgiu nas comunidades negras protestantes dos EUA. Numa pesquisa rápida na internet se descobre que gospel também designa cantos religiosos de alguns povos negros africanos. É verdade que a maioria dos cantores/as conhecidos do estilo gospel é protestante. Existem algumas exceções que tentam produzir músicas em outros estilos (forró, frevo, rock, etc), mas não fazem grande sucesso. Hoje existe também o gospel católico, que em minha opinião surge por absoluto modismo.
É notório que o projeto do referido vereador, que é um bolsonarista, negacionista e armamentista de carteirinha, foca no seu público e eleitores formado em sua maioria por protestantes (evangélicos) da linha (neo)pentecostal. O mesmo pode se dizer dos demais vereadores/as e do prefeito que aprovou o projeto.
Ao contrário de outros ritmos como o brega, o frevo, o maracatu, entre outros, qual a identificação cultural que o gospel tem com a nossa cultura? Inclusive, não é preciso muito esforço pra notar que muitas músicas intituladas como gospel (protestantes e católicas), fazem ataques contra elementos da nossa cultura, acusando-os de serem demoníacos, mundanos.
Se o critério for o fato de serem músicas conhecidas e muito tocadas, então transformaremos outros ritmos também como nosso patrimônio, a exemplo do reggae, do rock etc.
Não sou contra a execução de nenhum estilo musical (apesar de não gostar de alguns, não sou a favor da proibição), porém, vale o ditado que diz: “Dai a César o que é de César”.
Um estilo musical, uma comida, uma moda cuja origem seja de outro país, pode até torna-se elemento de um país diferente. Para isto, esta expressão deve dialogar com a cultura local e estabelecer trocas de influências, identificação e pertencimento. Temos no Brasil várias expressões que apesar de terem raízes em outros países, se tornaram tão nossas devido as influências locais, num processo de aculturação.
Por fim, retorno a afirmação inicial de que a aprovação da música gospel como patrimônio imaterial do Recife tem exclusivamente motivações político-eleitorais, pois, como demonstrado, a música gospel tal qual se produz aqui não dialoga nem respeita a nossa cultura e, portanto, coloca-se como um elemento estranho reforçando a negação dela.
*Enildo Luiz Gouveia é professor, teólogo, poeta, cantor e compositor. É membro da Academia Cabense de Letras – ACL.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Coral Gospel afto-americano do Texas (EUA), em apresentação em Ribeirão Preto (SP), em 2019.