Crise na fronteira entre Polônia e Bielorrússia: “não queremos que as pessoas morram na floresta”
Médicos Sem Fronteiras
Em 10.02.2022
Vozes da sociedade civil polonesa na fronteira com a Bielorrússia
Dado que as organizações de ajuda e os grupos de voluntários estão impedidos de acessar o lado polaco da zona fronteiriça da Bielorrússia, os residentes das áreas restritas e os que vivem perto são as únicas pessoas que podem chegar aos que necessitam de ajuda, embora para eles a prestação de assistência também seja considerada ilegal. Ajudar essas mulheres, crianças e homens que estão presos em temperaturas congelantes se tornou um empreendimento clandestino e perigoso.
Embora Médicos Sem Fronteiras (MSF) tenha tomado a difícil decisão de se retirar da área fronteiriça polonesa após ser impedida por meses pelas autoridades de entrar na zona restrita, queremos compartilhar as preocupações daqueles que ficaram nestes lugares para ajudar as pessoas mais vulneráveis escondidas na floresta sob condições extremas. Estas são as vozes de algumas pessoas com quem conversamos:
Como sua vida mudou desde que a situação atual na fronteira começou?
“A maior mudança foi quando as pessoas começaram a vir para o nosso bairro. No começo, apenas ouvimos falar de pessoas atravessando a fronteira e vimos fotos porque as pessoas não podiam passar pela nossa área, pois há pântanos por toda parte. Mas receio que haja alguns corpos nestes pântanos”, disse Zosia*, moradora de uma vila na região fronteiriça.
“Então foi estabelecido o estado de emergência. Vivo fora da zona do estado de emergência, mas perto da região, por isso, atravessei a zona muitas vezes. Mas para os meus amigos que moram na parte de dentro, eu acho que é muito mais difícil, porque eles encontram soldados armados o tempo todo. As crianças costumam ter medo”, disse ela.
“Nossa vida mudou de muitas maneiras: noites agitadas, tensão, medo de que ajudar os refugiados seja visto como envolvimento em tráfico e contrabando de pessoas, medo de que os círculos da extrema-direita possam se vingar das pessoas que ajudam. A liberdade de movimento foi restringida e, portanto, a atividade turística normal é impossível. Apesar de tudo, nos tornamos mais próximos em nossa família imediata. Falamos muito sobre isso, tenho muita raiva, me sobrecarrego com meus pensamentos, mas tenho apoio da minha esposa, e nosso filho mais velho volta para casa com mais frequência”, disse Marek*, morador de uma vila na zona restrita.
“Se você abrir as janelas de manhã, poderá ver equipamentos pesados. É uma situação deprimente; temos que nos lembrar de levar todos os nossos documentos, mesmo enquanto passeamos com o cachorro. Todos os hotéis, albergues, quartos de hóspedes, tudo está ocupado por serviços militares. O fato de você não poder convidar pessoas, familiares ou amigos aqui também dificulta. É difícil quando você está separado do resto do país”, disse ele.
Você ou alguém que você conhece encontrou problemas ao ajudar as pessoas em movimento?
“Eu estava ajudando um grupo de pessoas que estavam em péssimas condições e chamamos uma ambulância. Claro que sabíamos que a ambulância viria com os guardas de fronteira, mas era impossível para nós deixar essas pessoas sozinhas [sem atendimento médico], sabendo da atitude dos guardas em relação aos migrantes. Veio um grupo, eram guardas de fronteira, mas não tinham insígnias ou as placas estavam escondidas e começaram a nos ameaçar. Disseram que estávamos lá ilegalmente, que éramos contrabandistas. Eles também eram muito hostis com os refugiados. Nos sentimos como se estivéssemos em uma armadilha. Tínhamos medo, não por nós mesmos, mas por essas pessoas que seriam empurradas para a floresta novamente”, disse Zosia*.
“Alguns tiveram problemas porque estavam dando apoio às pessoas em movimento. Certa vez, fui acusado de ‘apoiar terroristas’ e ‘agir contra o Estado polonês’. Uma pessoa que limpava a floresta foi detida por militares uniformizados e interrogada. A casa de outra pessoa foi bombardeada com ovos”, disse Marek*.
“Minha família sofreu agressão verbal [por ajudar] – eles disseram que estávamos agindo contra o estado polonês. No começo, eles tentaram nos dizer que era ilegal ajudar, para nos intimidar. […] Há pessoas que estão ideologicamente ‘defendendo as fronteiras de sua pátria’, aquelas que são a favor da proteção dos soldados, que acreditam que as pessoas da floresta são criminosas”, disse ele.
“É totalmente inaceitável que os voluntários locais sejam difamados e intimidados com o objetivo de impedi-los de fornecer apoio”, afirma Frauke Ossig, coordenadora de emergência de MSF para Polônia e Bielorrússia.
Você distribuiu itens vitais para pessoas em movimento. As pessoas da sua comunidade apoiam isso?
“As pessoas no meu vilarejo sabem o que estamos fazendo por causa dos comentários de algumas pessoas. Nós não falamos sobre isso e eu posso imaginar o que eles pensam a respeito. Mas, por outro lado, tivemos um apoio incrível de nossos amigos, muitos dos quais vieram aqui para nos ajudar. Muitos foram para a floresta conosco, entregando coisas para as pessoas que estão presas lá. Isso é muito importante para mim. Quando vou à floresta, sinto que não estou sozinho. Não estou fazendo isso sozinho, mas em nome de um grupo muito grande de pessoas”, disse Zosia*.
“O que me surpreendeu foi que a família com quem passamos o Natal sequer nos perguntou sobre a situação na fronteira. As pessoas fogem disso, não querem estragar seu bem-estar. Eles tiveram a chance de nos perguntar, pessoas que vivem em uma zona restritiva, e mesmo assim ninguém se interessou”, disse Marek*.
“A comunidade está mais uma vez dividida entre os que estão satisfeitos com os serviços que defendem a fronteira e os que não podem ficar indiferentes. Os militares gostariam que ninguém falasse sobre nada e que todos ficassem quietos e fingissem não ver nada”, disse Silwia*, moradora de uma vila na zona restrita.
As crianças entendem o que está acontecendo? Elas entendem por que há tantos seguranças em seu vilarejo?
“Acho que minha filha não entende tudo, ela voltou do jardim de infância uma vez e nos disse que deveríamos ajudar os soldados, que os refugiados jogariam pedras no jardim de infância dela e eram pessoas ruins. Meu marido tentou explicar a ela que isso não era verdade, mas ela não quis ouvi-lo. Então eu tive que dizer a ela muitas coisas que eu não teria dito porque eu não tenho certeza se uma garotinha deveria saber que há crianças na floresta. Eu tive que dizer a ela porque ela me fez muitas perguntas.
“Minha filha não tem medo de soldados, acho que meu filho de 11 anos tem mais problemas com isso. Ele também ouviu muitas coisas horríveis na escola e, conforme ele entende, mais acho difícil para ele nos ouvir falar sobre cadáveres, mas é impossível para ele não ouvir todas essas coisas morando em uma casinha com muitos ativistas chegando. Mas ele é como um jovem adulto, ele entende muito”, disse Zosia*.
“Eu não tenho filhos pequenos, mas ouço falar de outras crianças desenhando postos de controle e tanques. Vejo playgrounds destruídos por equipamentos militares e carros militares estacionados ao lado de escolas e jardins de infância. Um amigo meu, um jovem pai que acha muito difícil explicar aos filhos o que está acontecendo, tem a teoria de que somos culpados pelo trauma de nossos filhos, no sentido de que talvez não os tenhamos protegido o suficiente. Mas estou me perguntando como poderíamos ter feito isso melhor com tudo o que está acontecendo…”, disse Marek*.
Você e as pessoas dos vilarejos dentro da zona restrita recebem apoio psicológico para lidar com essa situação?
“Meu filho está conversando com uma psicóloga. Ele foi duas vezes e, apesar de não falar muito sobre isso, acho que ele está bem em conseguir esse apoio. É de graça, temos apoio para nós e para as crianças, e é fácil de conseguir”, disse Zosia*.
“Conheço várias pessoas que ficaram traumatizadas ao ver famílias escondidas nos arbustos, vê-las capturadas por guardas de fronteira e depois descobrir que foram levadas para trás das cercas de arame novamente… As pessoas que trabalham em cooperação com o Grupo Granica (Grupo Fronteiriço) têm acesso à assistência psicológica gratuita. O Grupo de Fronteiras ajuda os voluntários da região. Sem eles, a situação seria muito difícil”, disse Marek*.
“Não havia apoio sistemático do lado do município, nem informativo, nem psicológico, mas havia encontros fora da zona com psicólogos, em grupo e até encontros individuais. A oferta foi repassada em postagens no Facebook, uma lista de psicólogos e psiquiatras que estão prontos para ajudar pessoas com estresse mental”, disse ele.
O que você acha que precisa ser feito?
“O mais importante é que o governo pare com os retornos forçados. E precisamos que o governo mude a legislação e acorde. Precisamos que as pessoas comecem a pensar sobre o que está acontecendo aqui e precisamos de grandes organizações para entrar na zona, apesar da legislação atual. É ultrajante que as organizações aceitem essas restrições. É contra a lei deixar as pessoas morrerem na floresta”, disse Zosia*.
“Precisamos de uma decisão do governo e dos guardas de fronteira que permita prestar assistência (médica e jurídica) às pessoas que necessitam, de acordo com os padrões civilizados e com respeito pelos direitos humanos. Também queremos uma decisão, o fim das restrições de movimento para os moradores locais e o fim da extrema militarização da zona fronteiriça”, disse Marek*.
“Queremos que os retornos forçados parem. Esperamos que as ordens mudem, e que as pessoas não sejam jogadas na floresta. Precisamos permitir a ajuda profissional de organizações, como organizações médicas – e midiáticas também”, disse ele.
“Não queremos que as pessoas morram na floresta. Não queremos que eles morram atrás da nossa cerca. Queremos ajudar as pessoas necessitadas, não importa de onde elas sejam. Fomos criados com certos valores e temos que viver de acordo com esses valores – para ajudar as pessoas que necessitam”, diz Marek*.
“Precisamos de um corredor humanitário, precisamos de apoio para informar às pessoas em casa e em todo o mundo sobre o que realmente está acontecendo. Aqueles que estão no poder e aqueles que dão ordens devem ver os migrantes como pessoas e dar-lhes dignidade e respeito – como pessoas que necessitam”, says Sylwia*.
*Nomes alterados para proteção.
Foto destaque: JEDRZEJ NOWICKI