O avanço da xenofobia

Por

Paulo Sérgio Pinheiro*

Em 12.02.2022

Moïse Mugenyi Kabagambe, 24 anos, refugiado congolês chegado ao Brasil aos 14, foi linchado a pauladas por três homens no quiosque Tropicália, na praia da Barra da Tijuca (zona oeste do Rio de Janeiro), no dia 24 de janeiro, por ter ido reclamar o pagamento de diárias no valor de R$ 200.

Há vídeo do linchamento liberado pela Polícia Civil, mas suspeita-se de ter sido editado, encobrindo a participação de outras pessoas no crime. Vazamento seletivo de informações pela polícia, de uma investigação absurdamente correndo em sigilo, tende a transformar vítima em culpado. Nessa linha, o dono do quiosque, Carlos Fabio da Silva Muzi, disse que #Moïse fora dispensado embriagado no dia 19, mas que pagara sua comissão e que ele fora trabalhar no quiosque Biruta, vizinho do Tropicália. O notável é esse dono nada ter feito depois de ter sido avisado no dia 24, às 23h, que Moïse estava morto.

Mais temerária ainda é a situação do quiosque vizinho, o Biruta, ao qual estavam ligados os três linchadores: a concessionária Orla Rio revelou que o contrato para a operação do quiosque foi celebrado com Celso Carnaval, que a entregou ao cabo da Polícia Militar Alauir de Mattos Faria. No dia 3 de fevereiro, o cabo resolveu se apresentar à Delegacia de Homicídios. Mas não foi apontado por seus funcionários, que depuseram, por envolvimento no homicídio. A irmã de Alauir, Viviane, foi enfática: “Meu irmão nunca respondeu por nada, é uma pessoa íntegra, nunca respondeu por nada, nem em briga”.

O terror que se abateu sobre Moïse não é um acontecimento isolado. Essas mortes de negros ocorrem em diferentes contextos. Primeiramente pelo Estado, especialmente sob o atual governo de extrema direita, que exacerbou ainda mais o racismo contra os negros. O aparelho repressivo de Estado, através das polícias militares, age como força de ocupação das comunidades e nas periferias das metrópoles onde vivem os negros. Pais negros ensinam a seus filhos crianças e adolescentes como proceder se forem abordados pelas polícias, pois negros são sempre suspeitos em abordagens policiais. Está mais do que comprovado que réus —e rés— negros recebem pelos mesmos crimes cometidos por brancos sentenças muito mais graves.

No cotidiano, negros são alvo de racismo no comércio e na sua interação com todo tipo de serviços. Assassinatos de negros em supermercados por membros de empresas de segurança privada, contratadas pelas grandes redes, marcaram os dois últimos anos. Nos empregos domésticos, negros são vítimas de todo tipo de injustiça e maus-tratos. A reclamação de Moïse por um pagamento devido foi respondida com violência e morte.

No Brasil, a questão dos imigrantes, que se transformou em gravíssimo problema político no hemisfério Norte, não é ainda percebida aqui como ameaça. Em junho de 2021, o Ministério da Justiça informou que o Brasil tinha 60 mil refugiados, sendo os mais numerosos os venezuelanos, haitianos e sírios. Havia pouco mais de 1.100 refugiados vindos da República Democrática do Congo, como Moïse. Apesar desse número, repetidos ataques de xenofobia têm ocorrido contra os refugiados em geral, quase sempre revestidos de racismo, como contra haitianos e congoleses.

O linchamento do jovem Moïse condensa no seu horror a violência ilegal do Estado, o terror imposto pelo aparelho repressivo, o #racismo que se abate sobre a população negra no Brasil e a crescente xenofobia contra refugiados. É essencial que o Ministério Público não permita que a trama misteriosa que cerca a concessão dos quiosques no Rio garanta a impunidade.

*Paulo Sérgio Pinheiro é integrante da Comissão Arns. Preside, desde 2011, a comissão independente internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) de investigação sobre a República Árabe da Síria, em Genebra. Foi ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso. Foi membro e coordenador da Comissão Nacional da Verdade.

Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo, 11/2/202

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