Saudades de Douglas Menezes
José Ambrósio dos Santos*
Em 23.09.2022
Caso ainda estivesse entre nós, o professor, escritor, cronista, contista e compositor Douglas Menezes completaria hoje 68 anos de idade. Mas, o maior cronista do Cabo de Santo Agostinho nas últimas quatro décadas se despediu da cidade e da gente que tanto amava justamente num fim de carnaval, na quarta-feira de cinzas de 2020. Como escreveu o jornalista Roberto Menezes na Apresentação do livro que homenageia o seu irmão, Douglas Menezes, um operário das letras, Douglas se encantou de repente. – [Douglas] Sumiu desse mundo como se falasse no pé do ouvido de cada cabense: ‘Já fiz o que tinha que fazer. Fui!’
Para homenagear o humanista que sonhava com flores, frutos e justiça social, publico a seguir crônica de Douglas que considero apropriada para o momento que o país vive, às vésperas de uma eleição presidencial em que claramente se vê ameaçada a democracia brasileira conquistada com muita luta e sofrimento, à custa de desaparecimentos, tortura e mortes.
O garoto da Rua da Matriz que admirava Graciliano Ramos, Manuel Bandeira e José Lins do Rêgo, também amava os Beatles, os Rolling Stones e ainda Chico Buarque, Geraldo Vandré e tantos outros compositores e cantores que ousavam enfrentar a censura imposta pelo regime militar. Douglas tinha apenas 12 anos incompletos quando da instauração da ditadura Civil-Militar, em 1964, mas logo percebeu que o dia a dia saíra da normalidade na sua então pacata cidade de Cabo de Santo Agostinho.
“Um menino viu, ainda sem entender direito, uma movimentação estranha em sua cidade. Era sessenta e quatro chegando para instalar a grande noite, sem sequer um candeeiro para iluminar o futuro, onde não havia luz no fim, nem túnel.”
Trecho da crônica 64, publicada em 31 de março de 2014.
Segue a crônica:
64
Por Douglas Menezes
Porque a madrugada ainda é tímida, não deixemos a noite de trevas voltar jamais. Coturno batendo forte, no barulho tétrico prenunciando a dor e a mordaça calando as muitas vozes. Baionetas em riste, legiões do império dominador do mundo. Gente acreditando na fantasia de uma salvação ilusória. Um menino viu, ainda sem entender, uma movimentação estranha em sua cidade. Era sessenta e quatro chegando para instalar a grande noite, sem sequer um candeeiro para iluminar o futuro, onde não havia luz no fim, nem túnel. Então, não vacilemos um segundo, não joguemos fora o generoso sangue dos que perderam a vida nessa luta para que voltássemos a falar.
E não foram poucos. Multidão de mortos-vivos, marcados para sempre. Muitos, lá fora, sem curtirem “a sombra de uma palmeira” da nação distante, numa espécie de morte porque fere o sentimento, traz a saudade de quem ficou, de quem é semente, do filho nascido, do filho não visto, órfão de pai vivo. Ah, sessenta e quatro, como devemos sempre lembrar de ti, numa obsessão necessária, não doentia, mas para que tenhamos força no sentido de não retornares ao nosso convívio. Te esconjuro, afasta o cálice do poeta, o cale-se reinando um tempo sem fim. Agarremos essa liberdade capenga, muitas vezes incoerente, trôpega, cheia de gente que a usa para os pessoais não republicanos fins.
Seguremos essa democracia tão ainda não democrática, tão ainda distante da simplicidade da maioria, pois não é só votar, mas ter direito à felicidade sobre a riqueza que todo mundo criou. Assim, defeituosa, escandalosa até, mas nossa democracia que estamos construindo numa lentidão de nunca terminar, mas dando passos de firmeza. Por isso, não deixemos sozinha, até que rompamos as nuvens turvas da madrugada e arranquemos o sol pleno para nós. Ah, sessenta e quatro, não queremos mais que “a definitiva noite se instale na Latina América”, pois o preço é impagável, um custo que ainda sustentamos, com o sacrifício de uma geração inteira, tolhida naquilo que nos é mais caro: o poder de expressão. Ah, sessenta e quatro, separo-te os algarismos, e somo depois, cada número e aparece a nota máxima dez. A certeza, então, de que não vais voltar jamais, as sementes já fincadas ao solo só têm espaço para a germinação fecunda de flores, frutos, justiça, trabalho e um país mais nosso.
31 de março de 2014.
*José Ambrósio dos Santos é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras.
Foto destaque: Douglas Menezes com o fardão da Academia Cabense de Letras, na qual ocupava a cadeira de número 11. Acervo da família.
Maravilhoso, Ambrósio! Como não lembrar esse trabalho de Douglas saído das entranhas do seu eu! Deus continue a iluminar nosso grande amigo e irmão!
E então, amiga Vera. O legado de Douglas Menezes precisa ser sempre lembrado e preservado. Sua contribuição para a literatura foi imensa, diversificada, profunda e marcante.
Texto coerente com os medos que assolam nossa democracia hoje. Quem viveu a ditadura de 64 sabe do que se tratam as falácias do atual presidente. Grande Douglas!
Isso, Jô. Escrito em 31 de março de 2014, esse texto de Douglas é muito atual. O momento é muito delicado e os democratas não podem vacilar.