Saudades do Poço do Boi (2)
José Ambrósio dos Santos*
Em 17.06.2024
Estava eu olhando a lua, ontem, e o pensamento logo me transportou para o Poço do Boi, sítio localizado no ‘pé’ da Serra das Russas, no município de Pombos, Pernambuco. Saí do Poço do Boi há mais de meio século, bem pequeno, na primeira metade da década de 60, mas, a terrinha onde nasci não sai de mim. Sei tratar-se de uma expressão batida (clichê na linguagem jornalística), mas creio que serve bem para abrir essa crônica, pois é a pura verdade.
Estou sempre a me lembrar do Poço do Boi, que à época integrava o território de Vitória de Santo Antão, e sempre, invariavelmente, nas noites de lua. Nossa, bate uma saudade enorme! A lua por entre os coqueiros, vista da casa da minha avó paterna Joaninha, para onde sempre ia nas férias escolares de julho e janeiro com o meu irmão Toinho (Antônio Marques dos Santos) na infância e adolescência.
Gostava muito quando íamos visitar alguém nessas noites, seguindo por caminhos estreitos, clarinhos pela luz da lua.
De volta para a casa da vovó, hora de dormir. Não havia margem para negociar um pouco mais de tempo. Nos sítios se dorme cedo, para se acordar cedo e ‘pegar no serviço’. Ainda mais diante da autoridade de dona Joaninha; mulher forte, severa, exigente.
A lua entrando pelas frestas do telhado, as histórias de assombração. Falava-se de um homem que se transformava em um enorme cachorro, por ter sido amaldiçoado. Pense no medo! Também de um animal desconhecido que comia cachorros. Tocaias eram feitas, mas ninguém conseguia pegar o bicho estranho. Havia também um homem que se tornava invisível e se transformava em objetos. Também a “cabra landri”, que só tinha a cabeça. E mais o ‘birundei coisado’, que eu nunca entendi direito do que se tratava, mas diziam ser assustador. E aí? Havia quem jurasse ser verdade e até ter visto alguns desses personagens do imaginário popular.
Nesse embalo, logo dormíamos, ansiosos pelo amanhecer e mais um dia de caminhadas e brincadeiras, também com os primos Nequinho, filho da tia Maria, e Toinho e Zezinho, filhos da tia Regina, que ainda moravam no Poço do Boi. A maioria da família dos meus pais (Ambrósio Manoel dos Santos e Ana Maria dos Santos) já havia migrado. Recife, Moreno e Cabo de Santo Agostinho foram os principais destinos.
O galo cantava e a gente já estava de pé. Os primos, principalmente Nequinho, sempre dormiam com a gente. Da cozinha, o cheiro forte de café coado no pano e que fora torrado e pisado pela vovó, nos convidava para um desjejum rápido. Nessas horas, o cheiro do toucinho também impregnava a sala de jantar, em razão da proximidade do fogo, já que era estrategicamente pendurado na parede da cozinha para receber o calor e a fumaça do fogão à lenha.
O dia era curto para as brincadeiras e as visitas às casas de parentes. À casa de Sebastião e Santana; de Manoel Luiz e Joana; do tio João Bezerra; da nossa bisavó Mãe Mina e de tantos outros. E quantas vezes, à noite, assistimos nossa avó Joaninha ajoelhada diante do oratório num cantinho próprio da sala, a pedir proteção para os filhos Ambrósio (meu pai), Maria, João, Severina, Antônio, Biu, Nicinha, José, Regina e Amaro, além dos genros, das noras e das suas proles.
Lembro-me com carinho das conversas dela com Paulo Miguel, a quem chamava de Paulo Migué. Marchante, ele tinha problema de audição.
Ele dizia:
– Dona Joaninha, eu matei um ‘poico’. Olhe, era um poico tão bonito! A senhora quer quantos quilos?
– Quero não, Paulo, respondia ela, quase gritando próximo ao ouvido de Paulo Migué.
– Dois quilos? Perguntava Paulo, como a confirmar. E deixava os dois quilos já cortados.
Como era lindo o Poço do Boi da minha infância! Era tudo o que eu conhecia até os seis anos de idade, quando fomos morar em Amaraji. O mundo se resumia àquele pedacinho de terra. Da nossa casa, ao lado da casa da nossa avó, via o céu encostar nas árvores sobre a pedra da coruja, a algumas centenas de metros. Quando morria alguém eu imaginava que chegando ao topo da pedra da coruja se abria uma portinha no céu e lá se colocava a pessoa falecida.
As idas ao Poço do Boi eram frequentes também na adolescência. Íamos sempre, eu e Toinho, em companhia de Nequinho, que agora morava no Cabo de Santo Agostinho, como nós. Banho na bica do tanque, no açude. Muitas vezes ajudávamos na colheita e na descasca do coco. Havia muitos coqueiros no sítio da nossa avó e também muitas mangueiras.
Nas noites de lua também me lembro do cheiro da maniçoba e da farinha fresquinha ainda no forno, na casa de farinha de Manoel Miranda, bem pertinho da capelinha construída sobre um rochedo e que representava o centro da comunidade formada basicamente por familiares. Lembrança bonita da minha mãe Santana, das minhas avós Joaninha e Mãe Có, de tias, primas e outras mulheres com véus sobre as cabeças, a rezar na capelinha.
Em noites de lua me lembro também de locais que apenas ouvia falar como Cumundará, Barriguda. E de nomes de pessoas como Pisquinha, Badeco, Rei Braz, Zadir, João Velho, Biu Cândido, que chamavam de Biu Câindo.
Com a juventude e a maturidade (compromissos, estudos, trabalho), as visitas foram escasseando. Me recordo da barraca do primo Zezinho, nas margens do açude. Uma geladeira à gás fazia a festa daqueles que podiam tomar umas cervejas. Mortadela era o ‘tira-gosto’ principal.
Zezinho hoje está rico. Nem se lembra mais da barraca (brincadeira). Toinho, que na infância dizia que estava juntando dinheiro para comprar uma picape (a caminhonete da época) para carregar verdura para a feira de Vitória de Santo Antão, agora possui frota de caminhões. Também enriqueceu. São proprietários da VerdFrut, entre outros empreendimentos.
Na última vez que estive no Poço do Boi (no dia 07 de janeiro de 2017), em companhia dos irmãos Toinho, Biu e Manoel, tive a satisfação de abraçar Manoel (Mané) de Nana, quase centenário, figura linda, um dos poucos remanescentes do tempo dos nossos pais.
Da nossa casa e da casa da nossa avó Joaninha não existe mais pedra sobre pedra. Mas vive forte na lembrança os bons momentos lá vividos e que sempre me transportam para a terra mãe, sobretudo nas noites de lua, que ultimamente aprecio surgindo na linha do horizonte do Oceano Atlântico (novo fim do mundo) prateando o mar de Candeias, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife.
Saudades.
*José Ambrósio dos Santos é jornalista e integrante da Academia Cabense de Letras.
Foto destaque: Capelinha do Poço do Boi – Óleo sobre tela de José Ambrósio dos Santos.
Esta crônica foi publicada pela primeira vez no dia 04.10.2020. É a que saudade apertou.
Texto maravilhoso na tradição da escrita dos nossos melhores. Tudo muito mágico e ancestral, José Ambrosio é um grande escritor, daqueles que embalam a imaginação da gente.
Obrigado, amigo Rodolfo Aureliano. Você, um dos meus compositores preferidos.
Bravo, poeta-escitor
Eita, amigo Jairo Lima. Simbora.
Maravilhoso relato homérico que conta os contos dessa aventura humana chamada vida, verdadeira odisseia em forma de poesia épica.
Bacana. A lua como testemunha.
Testemunho aqui tentando me isentar do fato de ter Ambrósio como grande amigo e irmão, como costumeiramente nos tratamos. Mas estamos diante de mais uma de suas belas e excelentes crônicas, que possui a habilidade de transportar o leitor para dentro da história, explorando cada detalhe de forma minuciosa e envolvente. O escritor que domina essa arte é capaz de capturar a atenção e a imaginação do leitor, fazendo com que cada palavra conte, sem pressa para chegar ao final. Tal escritor — e nesse, um marco referencial da personalidade do amigo Ambrósio — é que isso o qualifica e nos assegura que ele possui um talento especial para observar o cotidiano e transformá-lo em algo extraordinário, usando a linguagem de maneira precisa e evocativa. Um grande talentoso, que me fez até ter medo da “cabra landri” e do tal “coisado”. A crônica, quando bem escrita, — e esta se insere neste contexto — tem o poder de transformar o ordinário em extraordinário, o simples em memorável, e o leitor em um participante ativo da narrativa. Grato por me permitir “viajar” até o Poço do Boi, mesmo sentado aqui na minha cadeira. Que viagem!
Meu amigo e irmão Wilson Firmo. Feliz que você tenha ‘viajado’ até a minha terrinha nessa crônica. Fragmentos da infância e da adolescência que nos fazem observar que tudo pode ser e continuar simples em nosso dia a dia, quando trazemos e alimentamos recordações saudáveis no agitado cotidiano.
Nasci no Sítio Jerimuns. Fica naquela região. Saí de lá aos seis anos,mas consigo reviver todas as travessuras que fiz por lá. Vc,querido Ambrósio,descreve com tanta perfeição e detalhes que consigo fechar os olhos, me transportar pra lá e sentir as sensações que vivi naquele tempo. Obrigada por tão belo texto-poema!
Professora e amiga Jô. Não sabia da sua origem naquela região que, aliás, fica pertinho da sua Juçaral. A vida no campo nos permite muitas travessuras, sim. Foram muitas no Poço do Boi. Como muitas e boas são as recordações daquele povo simples, amigo, solidário.
As memórias reconstroem nosso ser. Ambrósio comungou magistralmente seu pretérito existencial. parece que eu estava lá!
É com alegria que leio esses comentários. Eles traduzem com muita propriedade o propósito da crônica, os sentimentos nela contidos.
E a pintura diz muito!
A capelinha sempre funcionou como núcleo da comunidade. Continua como símbolo e é um dos pontos mais visitados e fotografados. Pintei a tela em plena pandemia.