Comer, dormir, vadiar e trabalhar

Por

José Ambrósio dos Santos*

Em 19.06.2024

Conheci a Maria Fumaça quando morava em Amaraji, na mata sul pernambucana. Ela era utilizada no transporte de cana de açúcar para as usinas da região.

É manhã de sábado e o dia está nublado, depois de amanhecer chovendo. Na estação de Ponte dos Carvalhos o VLT se aproxima sem fazer barulho. Como ainda é novidade (está em fase de testes), são muitos os comentários, todos positivos. O veículo leve sobre trilhos está chegando para aposentar de vez o trem a diesel, sucessor da saudosa Maria Fumaça.  

O percurso até a estação central do Cabo de Santo Agostinho é rápido, cerca de dez minutos, tempo que será reduzido quando entrar em operação diariamente. Atualmente, apenas aos sábados se pode circular no VLT. Apesar de lotados todos os cinco vagões articulados, pelos quais se pode circular, nenhuma pessoa conhecida. 

Homens e mulheres que se dirigem para as dezenas de indústrias do Complexo Industrial Portuário de Suape e outras empresas de serviços. Pessoas que não se cumprimentam, que nem mesmo se avistam apesar de estarem lado a lado e seguindo a destinos comuns. 

Sotaques variados, estilos que deixam claro que são trabalhadores de outros estados atraídos pelo boom desenvolvimentista da região do entorno de Suape com suas dezenas de milhares de empregos. Mas, todos “baianos”, como estão sendo chamados os “forasteiros”, em um explícito e perigoso sentimento xenófobo que até pouco tempo os cabenses e ipojucanos desconheciam.

 Ao descer na estação do Cabo foi inevitável a volta ao passado. Quando cheguei adolescente à cidade, no início da década de 1970, conhecia muitos dos funcionários da estação, pois morava na Vila Social. Praticamente todos os dias eu andava no trem, que naquela época tinha cadeiras de madeira cujos encostos a pessoa virava, a depender do destino da viagem. 

Lembro-me que certa vez levei uma severa bronca de um dos funcionários que conseguiu me segurar e evitar que eu caísse embaixo do trem em pleno movimento, por ter saltado com a locomotiva ainda em movimento. Coisas de adolescente ainda sem muita noção de perigo. 

Na estação, outra multidão. As pessoas sequer esperam o esvaziamento dos vagões e esbarram naquelas que descem. Reclamações de um lado, gestos de “tô nem aí” de outro, e as pessoas seguem seus caminhos em um vaivém que nem de longe lembra aqueles anos em que o Brasil ainda festejava a conquista do tricampeonato mundial de futebol, na Copa de 1970 disputada no México.

Fim de linha para o VLT que oferece mais conforto aos usuários, com ar-condicionado e, em breve, redução dos intervalos entre as viagens e também do tempo de viagem até Cajueiro Seco, em Jaboatão dos Guararapes, de onde se embarca nos trens elétricos. 

Fim de linha, vírgula. É que embora o VLT não precise fazer o retorno, como o trem diesel, cuja máquina é desatrelada do primeiro vagão que em seguida passará a ser o último, a linha férrea ainda corta a cidade e segue em direção a Escada, Ribeirão, a mesma estrada de fero que o poeta imortalizou: “Vou danado pra Catende…” Na época de Ascenso Ferreira, a Maria Fumaça, encantadora quando se aproximava das estações com seus jatos de vapor, seus apitos e barulhos característicos.

Conheci a Maria Fumaça quando morava em Amaraji, na mata sul pernambucana. Ela era utilizada no transporte de cana de açúcar para as usinas da região. Grata lembrança em meio ao agito agora das avenidas Historiador Pereira da Costa e Dr. Antônio de Souza Leão, as principais da cidade. Um vaivém ainda mais frenético e mais uma vez caras desconhecidas. Finalmente um olá, ao chegar ao Mercadão, antigo cartão postal ora em lamentável decadência, onde encontrei um velho conhecido.

O estado do Mercadão, no centro do Cabo e a poucas centenas de metros da Prefeitura, atesta o descaso com áreas vitais da cidade pela atual gestão pública municipal. O principal centro de abastecimento sangra há mais de sete anos, com a prefeitura fazendo apenas paliativos e promessas de requalificação. Desorganização, lixo, mau cheiro, trânsito caótico. A cidade não se preparou para o boom e, sem o diálogo que facilita o planejamento, cresce economicamente, mas sem o correspondente desenvolvimento social que torna as pessoas mais solidárias e participativas. 

Novos trilhos estão sendo assentados para um VLT aguardado por um povo que, parodiando em parte o poeta Ascenso Ferreira, quer comer, dormir, vadiar, mas principalmente trabalhar e transformar a cidade que tem pressa, por saber do seu grande potencial.

*José Ambrósio dos Santos é jornalista e integrante da Academia Cabense de Letras.

Imagem: Foto de José Ferreira

Esta crônica foi divulgada pela primeira vez em julho de 2012.