Lembranças de Amaraji
José Ambrósio dos Santos*
Em 05.07.2024
A luz amarelada das lâmpadas incandescentes produzia sempre uma bela fotografia, principalmente quando chovia fino, algo frequente na cidade rodeada por canaviais e conhecida por suas cachoeiras.
Há duas semanas mencionei em duas crônicas o município de Amaraji e fiquei sabendo dos laços afetivos da amiga escritora e presidente da Academia Cabense de Letras, Neilza Buarque, com aquela charmosa cidadezinha da mata sul de Pernambuco. Morei em Amaraji entre 1963 e 1966. Apenas três anos, dos seis aos nove anos de idade. Pouquíssimo tempo e pouquíssima idade para registrar e armazenar memórias afetivas.
Voltei a Amaraji já adulto, e poucas vezes. Não conheço ninguém daquela época e mesmo de hoje. Mas guardo agradáveis recordações da terra dos pais de Neilza.
Meu pai, Ambrósio Manoel dos Santos, era funcionário dos Correios. Morávamos bem próximo à estação ferroviária. Foi lá que conheci a Maria Fumaça. O trem de ferro chegava majestoso, apitando, barulhento, jogando fumaça e vapor, atraindo a garotada que corria para a estação. Uma festa. Como era bonita a Maria Fumaça.
Televisão era novidade e para poucas famílias. Assistíamos na casa de dona Nair, ou Nadir, que abria a porta e as janelas para a criançada. Batman, Tarzan e séries como Perdidos no Espaço a gente não perdia. Eu, meu irmão caçula Antônio Marques dos Santos, e amigos vizinhos.
Bem próximo morava uma família que produzia pirulitos. Não sei se o pai ou algum dos filhos saia pelas ruas com uma tábua cheia de furos preenchidos com os pirulitos. Tocava um apito para dizer que estava passando. A tábua voltava sempre vazia.
Também bem próximo ficava o Colégio Dom Luiz de Brito, onde fui alfabetizado. Foi lá que a minha irmã Betinha, que nasceu no dia 22 de abril, apressada em responder à professora Quitéria – dona Quiterinha – a data de nascimento, trocou o ano pelo da chegada dos portugueses na Bahia na mesma data, em 1500. Até hoje ela se diverte quando é lembrada. A menina mais velha do Brasil.
A energia elétrica era gerada a partir de uma queda d’água em um engenho próximo, creio que Engenho Garra. A fiação elétrica chegava à cidade através de postes de madeira. Iluminação precária, mas suficiente para uma cidade de poucos eletrodomésticos – geladeira também era para poucos – e que dormia cedo. Me lembro que adolescentes penduravam anzóis próximo ás lâmpadas incandescentes dos postes para capturar morcegos atraídos por mariposas. Estranha diversão, não é mesmo?
A luz amarelada das lâmpadas incandescentes produzia sempre uma bela fotografia, principalmente quando chovia fino, algo frequente na cidade rodeada por canaviais e conhecida por suas cachoeiras. Os banhos no rio Amaraji eram uma diversão sempre muito aguardada. Também os passeios pelos engenhos Garra, Sete Ranchos e outros.
Outra diversão muito apreciada eram as matinês no único cinema, bem próximo à igreja matriz de São José. As exibições eram precedidas por músicas, e o cantor Noite Ilustrada parecia ter a preferência do operador de som. “Quero morrer, numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba…”. E mais: “Sei que é covardia um homem chorar…”; “Laranja madura, na beira da estrada…”.
Havia um cidadão folclórico conhecido como João ou Biu das Flores. Sujeito simples, pacato, que costumava pegar flores nos jardins das casas, com a devida autorização, claro. O curioso é que ele punha as flores sob o chapéu. Daí o apelido.
Me recordo de uma moça muito bonita que era funcionária da Prefeitura. Acho que eu era apaixonado por ela. Vizinha, era filha de seu Assênio, um cidadão aposentado que fazia brinquedos de madeira e presenteava a meninada. De modo que eu sabia a hora de ela sair para o trabalho, logo cedo, e ficava esperando para receber um simples carinho dela. Ganhava o dia! Não me lembro do nome dela. Naíza ou Anaíza, creio.
Uma cena muito presente sempre que ‘viajo’ para Amaraji é a de uma agressão violenta de um menino vizinho ao meu irmão Antônio. Ele mordia um carretel de linha – carretel de madeira – e o menino lhe deu um tapa na boca. Ao ver o sangue, parti para cima do menino. A briga foi feia. Queria ‘istraçaiar‘, como diria o boxeador pernambucano Luciano ‘Todo duro’ Torres. Adultos precisaram nos separar. Mas, no dia seguinte já estávamos novamente brincando. De boa, como se diz hoje. Coisas que só crianças sabem fazer.
Um belo dia o meu pai foi transferido para o distrito de Tapera – hoje Bonança -, em Moreno. E assim deixamos a bela Amaraji. Mas essa é outra história.
*José Ambrósio dos Santos é jornalista e integrante da Academia Cabense de Letras.
Imagem: Foto antiga de Amaraji. Ao fundo, Igreja Matriz de São José. Autor desconhecido.
Ontem,na FENEART,comprei dois quadros que retratam aproximadamente a descrição acima. Quando os vi fiquei encantada. São lembranças e sentimentos que nunca se apagam. Parece que,com o passar do tempo,ficam mais vivas. Obrigada, Ambrósio,por tão bela descrição de um tempo que não se repete mais!
Amiga Jô. Precisamos sempre revisitar momentos da nossa caminhada, refazer trilhas que nos trouxeram até aqui. Cada momento foi necessário ter sido vivido. Foram eles que nos moldaram e nos tornaram o que somos. Compartilhar essas experiências contribui, de alguma forma, a entender a marcha que empreendemos e a ludicidade de tempos que como você diz, não se repetem mais.
Parabéns Ambrósio, pela crônica sobre esse pedacinho de chão que não tive o prazer de conhecer pessoalmente, mas amei conhecê-lo por você!
Fico feliz em despertar nas pessoas essa percepção digamos paupável, visual com a minha narrativa. Amaraji é uma cidade muito cativante. Está no meu radar voltar lá em breve para apreciar melhor a terrinha.