Artigo

Diversidade e desinstitucionalização religiosa no Cabo de Santo Agostinho: uma leitura do Censo de 2022

Ricardo Jorge Silveira Gomes[1]

Em 11.06.2025

  1. Apresentação

O presente artigo analisa os dados do Censo Demográfico de 2022 relativos às filiações religiosas no município do Cabo de Santo Agostinho (PE), destacando o crescimento significativo da população sem religião (21,97%). Também discute a composição das principais matrizes religiosas — evangélica (43,73%), católica (28,16%) — e de minorias religiosas como espíritas (0,66%), adeptos de religiões de matriz africana (0,31%) e tradições indígenas (0,01%). À luz de teóricos como Danièle Hervieu-Léger, Paul Freston, Antônio Flávio Pierucci e José Eustáquio Diniz Alves, propomos uma leitura crítica sobre os processos de secularização, pluralização religiosa e reconfiguração do campo religioso brasileiro no contexto local.

A partir dos dados do Censo de 2022 do IBGE, nota-se um cenário de grande transformação na paisagem religiosa do município do Cabo de Santo Agostinho. O crescimento dos “sem religião” para 21,97% é particularmente expressivo, colocando este grupo como o terceiro maior do município, atrás apenas dos evangélicos (43,73%) e dos católicos apostólicos romanos (28,16%). O aparecimento — ainda que numericamente pequeno — de segmentos como o espiritismo (0,66%), as religiões de matriz africana como Umbanda e Candomblé (0,31%) e as tradições indígenas (0,01%) também indicam um quadro de diversificação religiosa.

Esta pesquisa busca entender os fatores que explicam o aumento dos “sem religião” e o reordenamento do campo religioso local. O fenômeno é analisado à luz de contribuições teóricas da sociologia da religião, considerando também o contexto urbano-periférico da cidade e a sua dinâmica histórica e social.

  1. A emergência dos “sem religião”: desinstitucionalização, crítica às religiões e novas formas de espiritualidade

O crescimento dos “sem religião” no Brasil — e particularmente no Cabo de Santo Agostinho — pode ser interpretado a partir do conceito de desinstitucionalização do religioso, formulado por Danièle Hervieu-Léger (2008). Para a autora, vivemos em uma era de “peregrinação religiosa”, na qual os indivíduos buscam formas de espiritualidade mais personalizadas, muitas vezes desconectadas de instituições religiosas formais. Isso não implica necessariamente uma negação do sagrado, mas uma crítica às instituições como mediadoras exclusivas da experiência religiosa.

O crescimento dos “sem religião” para 21,97% da população do Cabo de Santo Agostinho, conforme os dados do Censo Demográfico de 2022, aponta para um fenômeno mais complexo do que uma simples recusa da fé. O aumento deste grupo deve ser compreendido como parte de um processo mais amplo de transformação das formas de pertencimento e prática religiosa na modernidade tardia, processo que Danièle Hervieu-Léger define como desinstitucionalização do religioso (2008).

Para a socióloga francesa, as religiões instituídas operam historicamente como sistemas de transmissão de uma “cadeia de memória” religiosa. Essa cadeia é composta por narrativas fundadoras, práticas simbólicas e dispositivos institucionais (igrejas, doutrinas, lideranças), que garantem a continuidade e a legitimidade da tradição religiosa ao longo do tempo. No entanto, nas sociedades contemporâneas, esta cadeia é rompida ou enfraquecida em razão da individualização das escolhas, da erosão da autoridade institucional e da fragmentação dos referenciais culturais.

No Cabo de Santo Agostinho, uma cidade marcada por acelerado crescimento urbano, desigualdades sociais, mobilidade populacional e acesso crescente às tecnologias de comunicação, esse rompimento da cadeia de memória pode ser observado em diversas frentes: jovens que abandonam a religião dos pais, indivíduos que transitam entre diferentes experiências religiosas, ou simplesmente se declaram “sem religião” por não reconhecerem nenhuma instituição como suficientemente legítima para mediar sua espiritualidade.

Nesse contexto, surge a figura do “peregrino do sentido” ou “crente à la carte”, que Hervieu-Léger descreve como aquele que constrói sua identidade espiritual de forma autônoma, selecionando elementos de diversas tradições — ou rejeitando todos eles. O “sem religião”, portanto, pode não ser um ateu, mas alguém que prática uma forma pessoalizada de espiritualidade, muitas vezes com referências vagas ao sagrado, à energia, à natureza, ou ao desenvolvimento pessoal. No Brasil, isso se expressa em práticas como meditação, leitura de textos espirituais diversos, consumo de conteúdos esotéricos nas redes sociais e até mesmo em uma religiosidade “não nomeada”.

Essa forma de espiritualidade difusa, desvinculada de instituições, encontra terreno fértil em contextos de urbanização e pluralismo como o do Cabo de Santo Agostinho. A desinstitucionalização não significa o desaparecimento do religioso, mas sua reconfiguração em bases subjetivas, sem mediação clerical e sem doutrina centralizada.

Além disso, a própria noção de bricolagem religiosa, trabalhada por Hervieu-Léger, ajuda a compreender o modo como muitos dos “sem religião” constroem suas crenças: combinando elementos do catolicismo popular, do espiritismo, de crenças afro-brasileiras e até mesmo de discursos científicos, psicológicos ou pseudocientíficos. Esses indivíduos resistem a etiquetas, rejeitam o proselitismo e optam por uma espiritualidade fluida, volátil, em consonância com a lógica de mercado e da cultura do consumo.

Por fim, deve-se destacar que a desinstitucionalização também pode ser uma resposta crítica à atuação política e moral das instituições religiosas. Casos de escândalos, discursos intolerantes, mercantilização da fé e alianças político-partidárias das igrejas (especialmente evangélicas e católicas) geram desencantamento com as instituições religiosas, levando à recusa da filiação formal. O “sem religião” é, muitas vezes, um sujeito crítico, cético em relação ao poder religioso institucional, mas não necessariamente contrário à espiritualidade como dimensão existencial.

2.1 Pluralização e declínio da autoridade institucional: a crítica de Antônio Flávio Pierucci à ideia de secularização

O crescimento dos “sem religião” no Brasil — e, de modo expressivo, no município do Cabo de Santo Agostinho, que atingiu 21,97% da população — tem sido muitas vezes interpretado por setores da imprensa e até por estudiosos como uma evidência da secularização. No entanto, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci (2004) faz uma crítica contundente ao uso indiscriminado do conceito de secularização no contexto brasileiro, advertindo que o país não vive um processo de descrença generalizada em Deus ou no sagrado, mas sim um movimento de pluralização religiosa e declínio da autoridade das instituições religiosas tradicionais.

Para Pierucci, o conceito clássico de secularização, amplamente utilizado na sociologia europeia, especialmente por autores como Peter Berger (antes de rever sua tese) e Bryan Wilson, supõe uma linearidade histórica rumo à perda de relevância da religião no mundo moderno. No entanto, no Brasil — e de forma bastante clara em cidades como o Cabo de Santo Agostinho — o que se observa é uma multiplicação das ofertas religiosas, convivendo com o crescimento de um contingente que se afasta das instituições, mas nem sempre da crença.

Em outras palavras, o que ocorre é uma desinstitucionalização parcial, sem necessariamente um colapso da religiosidade. Isso é evidente na composição atual do campo religioso do Cabo: os evangélicos (43,73%) crescem, mas em meio a uma enorme diversidade interna; os católicos (28,16%) declinam; os espíritas (0,66%) e religiões afro-brasileiras (0,31%) persistem em pequenos núcleos; enquanto os “sem religião” crescem significativamente. Esse cenário não é de substituição da religião pela razão secular, mas de erosão da autoridade unívoca das grandes igrejas e de emergência de trajetórias religiosas mais fragmentadas, móveis e autônomas.

Pierucci sugere que o Brasil vive aquilo que ele chama de “mercado religioso desregulado”, onde as instituições perdem seu monopólio interpretativo sobre o sagrado. Nesse mercado, indivíduos circulam entre denominações, constroem religiosidades “sob medida” ou simplesmente recusam a filiação a qualquer organização. Muitos dos “sem religião” cabem justamente nesse perfil: pessoas que creem sem pertencer, como diz a famosa fórmula de Grace Davie (1994), e que rejeitam rótulos institucionais sem abandonar por completo o campo religioso.

No caso do Cabo de Santo Agostinho, a crítica de Pierucci é particularmente útil para compreender como o afastamento institucional pode estar relacionado a fatores locais, como:

  • Cansaço institucional com práticas autoritárias ou moralistas de igrejas;
  • Desencanto com lideranças religiosas, especialmente quando envolvidas em escândalos ou alianças político-partidárias;
  • Busca por espiritualidade “livre”, não vinculada a dogmas;
  • Influência de uma juventude mais escolarizada e conectada às redes sociais, onde circulam discursos de crítica à religião organizada.

Pierucci também destaca que o Brasil é um país “religioso demais para ser secular”, mas com uma religiosidade que cada vez menos passa pelas mediações formais e clericais. O crescimento dos “sem religião”, neste sentido, é sintoma de um rearranjo religioso mais profundo, no qual os indivíduos reagem às instituições tradicionais, sem necessariamente abdicar da busca por sentido, transcendência ou espiritualidade.

Portanto, em vez de falarmos em “secularização” no Cabo de Santo Agostinho, seria mais correto — como sugere Pierucci — falar de um processo de desinstitucionalização combinada com pluralização, onde o sagrado é reconfigurado em novos moldes, muitas vezes subjetivos, híbridos ou silenciosos.

2.2 Modernização demográfica, juventude urbana e o crescimento dos “sem religião”: contribuições de José Eustáquio Diniz Alves

O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves tem chamado a atenção, desde meados da década de 2010, para a correlação entre indicadores de modernização social e o crescimento do contingente da população brasileira que se declara “sem religião”. Para Alves, esse crescimento não ocorre por acaso, mas está diretamente ligado a transformações estruturais da sociedade brasileira, especialmente nas últimas três décadas: aumento da escolarização, urbanização acelerada, queda da fecundidade, avanço tecnológico, inclusão digital e ampliação dos direitos individuais.

Essas transformações, segundo o autor, favorecem um ambiente social mais propício à autonomia de escolha religiosa, rompendo a lógica da hereditariedade religiosa, onde os filhos necessariamente seguem a tradição dos pais. Em particular, o crescimento dos “sem religião” se concentra entre os jovens adultos, os urbanos escolarizados e os moradores de grandes centros ou regiões metropolitanas.

No caso do Cabo de Santo Agostinho, município integrante da Região Metropolitana do Recife, essa leitura é extremamente pertinente. A cidade combina características de um espaço urbano em expansão — com zonas industriais, portuárias e logísticas (como Suape), um setor de comércio e serviços crescente e intensa mobilidade populacional — com áreas de forte desigualdade socioeconômica e histórico de ocupações populares e desassistência estatal. Esse cenário resulta em uma juventude que, embora inserida num ambiente urbano e conectada tecnologicamente, vive em meio a vulnerabilidades sociais e tensões identitárias.

Nesse contexto, os jovens cabenses podem se sentir desconectados das propostas religiosas tradicionais, percebendo-as como autoritárias, conservadoras ou incoerentes com suas vivências. Muitas igrejas, sobretudo as mais tradicionais, não conseguem responder às demandas simbólicas, afetivas e éticas desses jovens. Isso favorece o surgimento de uma juventude que não rejeita a espiritualidade em si, mas opta por não se filiar institucionalmente, declarando-se “sem religião”.

Como observa Diniz Alves, esse afastamento tende a ser mais forte entre os que possuem maior escolarização, o que os capacita a fazer leituras críticas da realidade, inclusive das estruturas religiosas. A escola pública, os meios de comunicação digital e o ambiente universitário têm sido, em muitos casos, espaços de desnaturalização da religião, onde o sagrado passa a ser uma entre várias possibilidades de leitura do mundo, e não mais a única.

Além disso, a influência das redes sociais é um fator crucial. A internet permite o acesso a discursos plurais, incluindo:

  • Críticas à moral religiosa tradicional (sobretudo em temas de gênero, sexualidade, racismo);
  • Divulgação de espiritualidades alternativas (esoterismo, autoajuda, práticas orientais);
  • Produção de memes e vídeos que satirizam ou denunciam abusos de lideranças religiosas;
  • Fortalecimento de identidades laicas ou ateias.

No Cabo de Santo Agostinho, muitos jovens utilizam a internet como principal fonte de informação e entretenimento, inclusive para discutir religião. A cultura digital, portanto, atua como vetor de questionamento da autoridade religiosa e como plataforma de construção de novos significados espirituais — muitas vezes não organizados, fragmentários ou “informais”.

Assim, à luz da análise de José Eustáquio Diniz Alves, o crescimento dos “sem religião” no município deve ser entendido como parte de uma transição religiosa ligada à modernização demográfica e cultural, marcada por um novo perfil geracional que valoriza a liberdade de escolha, a autenticidade subjetiva e o rompimento com a imposição doutrinária.

Considerações finais: reconfiguração do campo religioso local

Os dados do Censo Demográfico de 2022 revelam uma transformação significativa no campo religioso do município do Cabo de Santo Agostinho. O crescimento expressivo dos “sem religião” — que agora representam 21,97% da população — não indica um processo de descrença generalizada ou de secularização nos moldes clássicos, mas sim uma profunda reconfiguração das formas de vivência e pertencimento religioso.

A análise das estatísticas em diálogo com a teoria sociológica permite compreender que a sociedade cabense está inserida em dinâmicas mais amplas de desinstitucionalização do religioso, conforme formulado por Danièle Hervieu-Léger, e de pluralização das crenças, como aponta Antônio Flávio Pierucci. As instituições religiosas tradicionais, como a Igreja Católica (28,16%) e mesmo os segmentos evangélicos (43,73%), enfrentam crescentes desafios para manter sua autoridade diante de uma população cada vez mais crítica, conectada e escolarizada.

No caso específico da juventude urbana da cidade, a análise de José Eustáquio Diniz Alves se mostra especialmente pertinente. Jovens com maior escolarização, imersos em uma cultura digital globalizada e em redes sociais, tendem a rejeitar imposições institucionais e abraçar formas mais livres, híbridas e personalizadas de espiritualidade — ou mesmo a ausência de qualquer filiação religiosa.

Ao lado disso, a presença minoritária, mas significativa, de grupos como os espíritas (0,66%), adeptos da Umbanda e do Candomblé (0,31%) e das tradições indígenas (0,01%) revela a continuidade de um campo religioso plural e resiliente, mesmo diante das desigualdades sociais e do preconceito religioso estrutural.

Em suma, o que se observa no Cabo de Santo Agostinho é um cenário de transição religiosa, marcado por deslocamentos, experimentações e rejeições — não da religião enquanto tal, mas das formas tradicionais de controle, mediação e pertencimento. A cidade exemplifica, em escala local, os dilemas e possibilidades do religioso em tempos de modernidade reflexiva, individualização e globalização cultural.

Referências

ALVES, José Eustáquio Diniz. A explosão dos sem religião e o futuro das crenças no Brasil. EcoDebate, n. 1.406, 23 jul. 2015. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br. Acesso em: 8 jun. 2025.

DAVIE, Grace. Religion in Modern Europe: A Memory Mutates. Oxford: Oxford University Press, 2000.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. São Paulo: Loyola, 2008.

JACOB, César Romero; HEES, Denise; MÜLLER, Maria Clara. Religião e sociedade no Brasil: um espaço em movimento. São Paulo: Loyola, 2012.

PIERUCCI, Antônio Flávio. Religião como realidade e como valor: uma crítica ao conceito de secularização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55, p. 117–126, fev. 2004.

(1) Ricardo Jorge Silveira Gomes – Doutor e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Especialista em Metodologia do Ensino pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Licenciado em História pela Faculdade de Formação de Professores da Zona da Mata Sul (FAMASUL). Membro Efetivo da Academia Cabense de Letras – ACL. Membro Efetivo do Instituto Histórico, Arqueológico, Geográfico e Cultural do Cabo de Santo Agostinho – IHAGCCABO. Seis Livros Publicados: GOMES, Ricardo Jorge Silveira. A Jornada de Trabalho do Docente: Ritual de deveres, restrições de direitos. Editora Universitária/UFPE.Recife.2020. GOMES, Ricardo Jorge Silveira. Pode confiar, ele é crente! Igrejas Pentecostais e as eleições cabenses de 2004. Editora Bagaço. Recife, 2018. GOMES, Ricardo Jorge Silveira. Vozes da Educação – Dialogar. Volume VII. A abordagem Freireana e as Ciências da Religião: construindo pontes rumo a Educação e Diversidade Cultural. São Paulo. 2018. GOMES, Ricardo Jorge Silveira. ACADEMIA DE LETRAS DE ESCADA – VIII ANTOLOGIA de textos Científicos – O Empreendedorismo de Madre Iva. João Pessoa, 2020.  GOMES, Ricardo Jorge Silveira GomesDA MISSA Á MILITÂNCIA: A trajetória Religiosa/Política do Padre Antônio Melo costa no município do Cabo de Santo Agostinho/PE (1963-1977). Curitiba – Appris, 2023. GOMES, Ricardo Jorge Silveira Gomes. Erivaldo Alves: Uma jornada de fé em ação acolhedora. Editora Inovação. 2025.

Imagem destaque: Web

 

 

One thought on “Diversidade e desinstitucionalização religiosa no Cabo de Santo Agostinho: uma leitura do Censo de 2022

O que você achou desse conteúdo?

Discover more from

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading