Mercadores de felicidades: um negócio lucrativo

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 22.07.2020

Existe um público carente de demandas vinculadas às suas necessidades, desejos e procura de si mesmo, buscando ensinamentos e orientações espirituais e emocionais e isso acontece em todas as áreas da vida. Para essas orientações e ensinamentos há um cardápio interminável de técnicas, exercícios e receituários que garantem o sucesso, o bem-estar e a cura das angústias e das dores da alma, do bolso e do coração. As redes sociais tornaram-se um território muito concorrido para a oferta desses “serviços de salvação” e as suas janelas se abrem como se fossem entradas certas para o jardim do Éden, Shangri-lá ou até mesmo Xanadu, contanto que oferte a possibilidade de novas trilhas que levem à desejada felicidade.

O mercado da felicidade é lucrativo e exponencialmente promissor. Os altos índices de adoecimentos da alma e do coração, a necessidade emergente do vil metal e a urgência de um lenitivo que aplaque as dores e tristezas são o principal argumento para o florescimento tão vivaz desse grande shopping Center da felicidade. Ou ainda a possibilidade de manter o tapete estendido para o acesso ao carpem die que alimenta o prazer do spa  ou das pratarias debulhadas nas mesas onde habitam os comensais. Sem intenção de citar literalmente Eclesiastes, podemos visualizar o outdoor que diz em neon: “vaidade, vaidade, vaidades das vaidades, tudo é vaidade”.

Não. Aqui não cabem os esfarrapados do mundo, como afirma Frantz Fanon. Aqui não é o lugar dos pretos que morrem nas favelas pelos tiros surdos da farda oficial. Aqui não tem vaga para os pobres favelados das periferias que trazem suas costelas desenhadas em seu corpo, como se fossem arquiteturas anatomicamente projetadas para sustentar apenas pele e coração. Aqui não tem hospedagem para abrigar as noites insólitas das insólitas sombras invisíveis que vagueiam pelos becos à procura de dormida, sem teto e sem nação. Definitivamente, aqui não é o lugar dos ambulantes, perambulantes das ruas, que comem por dia o suor de cada dia para aplacar a fatídica fome que ameaça a vida, vida sem ânima para quem nem sequer pensa no amanhã.

Falo da dor acometida pelas incertezas de quem não sabe ao certo a tonalidade adequada da roupa para os salões imperiais. Falo das dores das suntuosidades palacianas que passeiam sobre o mármore imaginando suas lápides colossais. Refiro-me também aos habitantes do segundo andar da clássica pirâmide social, os que não cessam de apertar o botão para ascender a um andar mais acima. Penso que aqui também é o lugar de quem na passarela se encontra perdido e não sabe para onde caminhar; dos que almejam sucesso e precisam de uma senha que abra a porta para acessar o reino perdido; dos que não tem fome de pão, mas que procuram um alívio, mesmo efêmero, para as suas dores da solidão, do coração e da alma, ou, até mesmo, da fútil e necessária necessidade de continuar na vitrine. Mas também dos incautos que sofrem suas dores e pelas suas dores são fisgados pela forma aliciante dos que prometem paz interior e felicidade plena.

É dessa embarcação de sofrimentos e carências que se joga o anzol na intenção da felicidade e o mar que se abre a essa pescaria é fértil de possibilidades, com um cardápio tão amplo que não elimina nenhum gosto ou desejo que se busca. É também dessa embarcação que se multiplicam os famintos clientes à procura de um alimento que sare as suas dores. Aqui se aplica a lógica do mercado: a lei da procura e da oferta, de tal maneira que faria inveja a Adam Smith.

Para ilustrar essa questão, uma pesquisa realizada pelo “grupo Consumoteca, liderado pelo antropólogo Michel Alcoforado, divulgou recentemente os resultados do estudo ‘Economia do mal-estar’, no qual avaliou a metrificação da felicidade na era das redes sociais. Foram entrevistadas três mil pessoas, numa etapa quantitativa, feita por meio de aplicativos online na América Latina, além de 15 grupos focais no Brasil”. A pesquisa mostra que ”os brasileiros são os mais infelizes entre os países pesquisados: 58% sentem-se insatisfeitos com sua vida atual. Além disso, oito em cada dez pessoas dizem ter projetos que não conseguem tirar do papel, 41% acham que não fazem tudo que poderiam fazer por sua felicidade e 35% das pessoas se sentem mais negativas quando acompanham a vida dos outros nas redes sociais” (https://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2020/02/13/impactos-da-felicidade-fabricada-para-as-redes-sociais.html). Esses dados já indicam uma corrida para alcançar a felicidade, e isso se dá principalmente através de conteúdos de aprimoramento pessoal, perfis motivacionais para se chegar à felicidade, eventos de desenvolvimento pessoal, processos de coaching  e leituras de livros de autoajuda.

Principalmente no mundo ocidental, vem ocorrendo, nas últimas décadas, uma intensa proliferação da oferta de livros de autoajuda, técnicas espirituais e de reflexão, práticas de exercícios inspirados na sabedoria da filosofia grega, como o estoicismo, ou em outras sabedorias antigas como o budismo, por exemplo. (FERRY, Luc. 7 maneiras de ser feliz: como viver de forma plena. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018). De certa forma, essas técnicas e exercícios práticos são reconfigurados para o nosso contexto atual, não perdem de vista a capacidade monetária da ação e funcionam muito como lições ou receitas a serem seguidas rigorosamente para que o resultado final seja positivo e eficiente. Certamente, é necessário lembrar que não se deve incluir o todo dessas práticas num mesmo carrossel, pois há uma pequena parte que faz um trabalho sério e salutar e que tem contribuído com excelência para o bem-estar de muitas pessoas.

O fato é que propor uma vida repleta de felicidades e plenamente regozijante, sem os desígnios da tristeza e das dores, como professa a maioria dessas “lojas da felicidade”, tem na sua base uma visão de mundo fincada no utilitarismo. O crescimento do capitalismo no mundo ocidental fez florescer, a partir do século XVIII, essa visão de mundo utilitarista que se estabeleceu pelo sentido de ser uma moral do bem-estar. Com isso, “o princípio fundamental do utilitarismo é bastante simples: uma ação é moralmente boa quando tende a aumentar a soma global de felicidade no universo ou a diminuir a soma global de sofrimento”, como afirma Ferry (2018). Isso significa dizer que o bem se relaciona diretamente com a satisfação dos interesses. O utilitarismo passa a ser esse sentido de que os seres humanos são fundamentalmente sujeitos definidos pelo interesse e esse interesse tem como finalidade suprema a felicidade.

A visão utilitarista é de que toda nossa vida é dominada pela busca da satisfação de nossos interesses. Desse modo, colocamos a felicidade como a questão central nas nossas buscas, pois no fundo, o que queremos mesmo é nos livrarmos das dores, das angústias e dos sofrimentos. Nessa concepção, os seres humanos estão sempre à procura de satisfazer os seus prazeres e anseios de forma mais completa e duradoura, e aí é que pode entrar a máxima de que “os fins justificam os meios”, pois nessa perspectiva, o que importa é a felicidade a qualquer custo. Portanto, é crescente e notória na nossa sociedade contemporânea, principalmente no ocidente, a valorização da felicidade (FERRY, 2018).

Dessa maneira, também é crescente a proliferação dos mercadores de felicidades, pois, de certa forma, a sociedade nos impõe a obrigação de sermos felizes, e, de alguma forma, também nos impõe o consumo desmedido que vai desde os itens de alimentação saudável, passando pelos exercícios físicos e os mais diversos tipos de psicoterapia, múltiplas técnicas de reconciliação consigo mesmo, livros e lições de autoajuda que garantem o caminho da busca interior, técnicas de meditação inspiradas na sabedoria grega e oriental, processos de coaching transformados em cursos, a maioria advinda dos Estados Unidos, baseada no utilitarismo anglo-saxônico. Então, o mercado da felicidade pode ser tão lucrativo quanto dispendioso. O resultado é que ele, ao mesmo tempo, leva felicidade para uns e, consequentemente, para outros, já sabemos a resposta.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.