Arqueologia da felicidade
Vera Lúcia Braga de Moura*
Em 30.07.2020
Falar de felicidade é falar da vida. É falar do ser. Da nossa essência. Inicialmente, me vem à mente uma profusão de indagações acerca do que seria a felicidade. Para que serve a felicidade? Ou melhor, o que é a felicidade? O que é ser um ser feliz? O que significa ter uma vida feliz? Para essa incursão em busca de entendimento sobre o que é a felicidade é necessário ressaltar a dificuldade em encontrar definições que alcancem a sua dimensão. O termo arqueologia, que intitula esse texto, me possibilita escavar trilhas que indiquem caminhos possíveis para a compreensão da tão propalada e desejada felicidade.
É necessário também estruturar a tessitura textual que dote de sentidos o que denominamos felicidade. Primeiramente, não existe a intenção de dar conta dessa demanda multifacetada e permeada por subjetividades. Serão necessárias outras reflexões pelas trilhas do ser em busca do entendimento sobre a felicidade. Nessa direção, solicito a quem se disponibilizar a seguir comigo nessa caminhada, que reflita, também, e estabeleça suas conexões sobre o que é felicidade. Assim, talvez de forma conjunta teremos mais assertividades nesse entendimento. Fico pensando sobre as nossas incertezas e constantes mudanças. Pensamos, sentimos e agimos de formas diferentes. A felicidade, certamente, deve ser concebida de modo diferente para todas as pessoas. Exige um nível de conhecimento sobre si mesmo, bem como, estar conectado com o que está dentro de nós e no nosso entorno.
Muitas inquietações chegam, de soslaio, ao adentrarmos nesse universo do que se convencionou chamar de felicidade. Surgem as questões do tipo quem somos nós e como vivenciamos esse sentimento de felicidade. Recorro à filósofa Hannah Arendt, com sua obra “A Condição Humana” (2019, p.10), quando sabiamente nos ensina que a “pluralidade é a condição da ação humana, porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá”. Ancorada nessa premissa, relaciono a ideia de que a felicidade é plural. A pluralidade é sua característica mais latente, assim como é de todo ser humano.
Nessa sequência, Arendt (2019, p. 11-12) assevera que os seres humanos são seres condicionados, porque tudo aquilo com o que eles entram em contato passa a ser uma condição de sua existência. Afirma a pensadora: “O que quer que toque a vida humana ou mantenha uma duradoura relação com ela assume imediatamente o caráter de condição da existência humana”. Por isso, quando tocamos alguém, tocamos, também, o mundo com o nosso jeito de ser. Somos impressões digitais emocionais, afetivas, culturais que alcançam o mundo com nossas ações. Reflexos de nós aspergem pelo mundo. Do nosso sentir, do nosso pensar e do nosso agir. Assim, a felicidade, esse sentimento que fascina, é sedutor, desejado e perseguido por nós. A experiência pessoal de felicidade precisa buscar a essência do ser na sua integralidade, a fim de que possa compreendê-la, vivenciá-la e estabelecer relações com o mundo.
Ao nos aventurarmos pelos meandros das atratividades capitalistas, não temos a garantia da sonhada felicidade. Na medida em que nos endividamos e aumentamos o consumo de maneira desenfreada, tornamo-nos acumuladores de coisas numa sociedade em permanente estado líquido, em que tudo é efêmero, fugaz, passageiro em demasia, até nas relações afetivas, conforme lembram os estudos de Zygmunt Bauman. Guardar, juntar, acumular não preenche e nem dá conta das necessidades afetivas e nem de sentimentos de felicidades. A felicidade está em nós, e não em coisas. Ela precisa ser estimulada, desenvolvida e passa pela nossa forma de ser e estar no mundo. A felicidade é um compromisso conosco e com as relações que estabelecemos com as outras pessoas e com a vida. A autorresponsabilidade e a responsabilidade social vão mostrar que o sentimento de felicidade interfere no coletivo. A forma como reagimos diante de nossas emoções afeta a nós mesmos, as pessoas com as quais nos relacionamos e ao nosso entorno.
Observamos, por exemplo, que não nos tornamos mais felizes em alcançar o “sucesso” por meio da competitividade exacerbada, numa sociedade hierarquizada, desigual, excludente e injusta. As nossas necessidades não são quantitativas. Adoecemos, nos frustramos, nos entristecemos, nos fragmentamos e nos afastamos de nossos pares e o sonho de ser feliz se torna um projeto a posteriori. O imperativo da felicidade imposto pela sociedade de consumo determina que ser feliz é a condição humana para chegar ao topo. E ao chegar nesse lugar, você olha para trás e observa que houve muitas perdas, entre elas, a perda de você mesmo. Perdeu-se o time da vida, perderam-se amores, amizades, afetividades; perdeu-se a saúde, o sentido da vida. E, quiçá, o que ficou foram alguns vislumbres embotados da tão sonhada e esperada felicidade imbuídos da ilusão do “ter” para “ser feliz”. É preciso ter responsabilidades com o consumo, com essa voracidade emocional. Isso indica que o ser humano precisa se reconectar com a sua essência, como medida cautelar e necessária para o encontro com a felicidade. As nossas necessidades são de cunho afetivo. Necessidades de amizades, de amorosidades, de introspeção. Precisamos de processos educativos que nos ensinem a amar, pois, certamente, esse caminho nos conduzirá à felicidade e ao encontro do ser.
Nessa busca de entendimento do ser, vou me inspirar no filósofo alemão Martin Heidegger (2005, p. 17), em sua obra “Cartas sobre o Humanismo”, em que ele afirma que o ser humano precisa ser reconduzido a sua essência para reencontrar-se como homem na sua humanidade. Humanismo, para Heidegger, é “meditar e cuidar para que o homem seja humano e não desumano, inumano, isto é, situado fora de sua essência”. Assim, o ser humano precisa ser repatriado, reconduzido à sua morada, às suas raízes, isto é, à sua essência. Nessa reaproximação do ser humano com sua essência, é possível que se debruce sobre a felicidade.
Friedrich Nietzsche (2011, p.8), outro filosofo alemão, vai dizer, na obra “Nietzsche para estressados”, que “o destino dos seres humanos é feito de momentos felizes e não de épocas felizes”. Diz, ainda, que a felicidade é frágil e volúvel, pois só podemos senti-la em alguns momentos. A felicidade, para esse autor, é como lampejos que nos auxiliam a seguir no enigmático caminho da vida. Na obra “O pensamento vivo de Nietzsche” (1985, p.89), o filósofo diz, ainda, que “ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida, ninguém exceto tu, só tu”. Daí, a felicidade certamente é uma tarefa do ser humano na busca por bem-estar, satisfação, harmonia, paz, estabilidade emocional, tarefa essa que estabelece a qualidade de sua relação consigo mesmo, com as outras pessoas, com a vida, com a natureza e com o mundo.
O encontro assertivo com a felicidade possibilitará que nos sintamos harmônicos, estáveis, motivados, porém, precisa-se de alguns ajustes para que o sentimento feliz entre em sinergia conosco. Com isso, surgem questões como: Você se sente feliz? Em qual relação temporal isso se efetiva? São perguntas dessa natureza que eu também me questiono, porque somos naturalmente transitórios, mudamos toda manhã quando acordamos, durante e quando finalizamos o dia. Temos diversas crenças, gostos, sentimentos, desejos, aspirações, modo de ser e enxergar a vida de formas diferentes e precisamos estar muito atentos sobre a inserção da felicidade em nossas vidas. Assim, espera-se que ela deixe de ser uma busca incessante, uma meta inatingível, e se torne a veste que cobre a nossa essência, que nos humaniza, que nos reconecta com o nosso ser, como tão bem define Heidegger. E, também, nos integra com os outros seres, que nos ligam à natureza, ao nosso compromisso com a sociedade, com a inclusão social, com a ética da alteridade, com o respeito aos outros seres, que nos permite sermos compassivos, generosos, amorosos, sensíveis e solidários com as nossas dores, com as dores das outras pessoas, e com as dores do mundo.
Consideremos em nós a essência do sândalo que perfuma o machado que o fere.
Ao longo dos diversos séculos, das nossas trajetórias humanas, se buscou definir o que seria a felicidade, condição importante para a compreensão do nosso sentimento de felicidade, mas não se chegou a nada conclusivo. Mas, pensando melhor, as definições não são o ponto, mas, sim, o que sentimos e como agimos diante do nosso sentir. Essa talvez seja uma das possibilidades para entendermos o que venha a ser felicidade e o que podemos fazer para nos sentirmos felizes. Desacelerar, não atropelar, não agir no automatismo, na impulsividade. O que quero dizer é que vivamos o momento presente; pratiquemos a atenção plena. Consideremos em nós a essência do sândalo que perfuma o machado que o fere. Observemo-nos melhor, enxerguemos ao outro e ao nosso entorno. Apreciemos a vida. Aprendamos a nos ouvir. Escutemos o outro. Procuremos nos compreender e compreender o outro. Sejamos seres humanos transformadores e responsáveis também, com o outro e com a sociedade. Busquemos a unidade. Vamos nos recolher um pouco, silenciar, perceber a si próprio e o outro e admitir o quanto a vida humana com todas as suas possibilidades e desafios é uma preciosidade. Nesse sentido, pode-se afirmar que isso é um ato de amor incondicional, uma plenitude. Sejamos felizes, não vamos esperar alcançar metas para sermos felizes. Escolhamos ser felizes agora, com todas as adversidades que a vida nos impõe.
“Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores”.
Cora Coralina
Com a poesia de Cora Coralina eu vislumbro um arco-íris de felicidade quando ela declama: “Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores”. Eis uma grande saída e encontro com a felicidade. Ser feliz é, sobretudo, ser capaz de seguir sua caminhada com serenidade, esperança, fé, alegria, mesmo enfrentando o sofrimento humano, encarando as dificuldades da vida. É chorar, limpar as lágrimas, aprender a sorrir, praticar a alegria, a gratidão, seguir com fé, como diz o músico e poeta Gilberto Gil: “Andar com fé eu vou/Que a fé não costuma faiá”. Cantarolando, chorando, sorrindo, amando, retirando as pedras do caminho e dizendo: eu sou feliz, porque você também é; e, nós somos felizes, porque assim eu escolhi, porque nós escolhemos.
*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Escreve às quintas-feiras.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
As leves palavras do texto ‘Arquelogia da felicidade” nos leva, necessariamente, a refletir acerca da condição humana, demasiadamente humana, que é a completude do nosso ser. Parabéns!
Grata Wanda! Interessante comentário !
Que belo texto! Vera sempre acompanhada do sentimento sensível do humano! Parabéns!
Obrigada querida Maelda! Feliz por ter gostado.
Vera, você escreve lindamente! Um bj grande
Obrigada Roberta! Feliz pelo seu retorno ! Beijo grande!
A felicidade que tanto buscamos, como ela é escorregadia e volátil !!! Temos que nos ancorar nas ponderações de Cora Coralina e desatar os “nós”que surgem em nosso viver.
E, ao sabor dos altos e baixos que permeiam nosso cotidiano, navegar com serenidade nos mares da vida! Parabéns Vera, bela explanação!!!
Lúcia querida, obrigada pelo
comentário! Você refletiu muito bem . Sim, a felicidade é muito subjetiva e escorregadia. Abraço afetuoso.
Vera, sinto que estavas inspirada e profundamente tocada ao escrever o belo texto. Ele traz um misto de poético e filosófico. Utilizou-se de referências bastante significativas. A analogia do sândalo e do machado nos remete ao princípio e ao fim; daquilo que se é gerado, para a finalidade de cada ser, cada coisa.
Parabéns.
Obrigada querida Anair. Excelente o seu comentário . Pensar na felicidade, realmente , é uma fonte de inspiração para encontrá-la e experienciá-la.
Abraços afetuosos!