O ódio gera dor. É sono pesado

Por
Ayrton Maciel*
Em 23.08.2020
Em uma pandemia, o que está por trás da frase “todo mundo um dia morre”? A interpretação que surge é que, se ‘um dia todo mundo morre’, não há razão para consternação, pela precocidade, pela antecipação, seja a de uma vida jovem, seja a de uma vida vivida, embora muitos anos ainda pudessem viver. Por trás do inconsciente do autor, o valor da frase é que, se”todo mundo um dia morre”, tanto faz que seja hoje ou daqui a 30 ou mais anos.
O ódio só gera dor. Ele se alimenta dele mesmo. Como na biologia, é uma reprodução assexuada, um organismo geneticamente igual a si próprio. É ser subconsciente. Ter consciência de que é um estágio abaixo do consciente, não torna o ser humano imune ao sentimento. No complexo contexto das relações humanas, o ódio é comumente acessado. Ele não está no inconsciente, área que desencadeia as doenças, portanto, é real. Assim, há os que se nutrem dele.
Há em quem, como na frase “todo mundo um dia morre”, o ódio é cristalino, seja por falas, seja nos gestos. Ninguém copia o símbolo de uma arma se não tem o desejo de usá-la. Afinal, não se aponta para aliados, e sim para quem se define como inimigo, para o que se identifica como incômodo, para tudo e todos que são obstáculos. Pode ou não se concretizar, mas é uma vontade.
Mas, como tratamos o ódio dentro de nós? É uma questão de diferenciação. Se não nos alimenta, não faz mal. Se não o transformamos em instrumento permanente de um desejo, somos normais, temos indignação. O ódio é também a alma em conflito. Se é passageiro, ainda que de tempos em tempos, é porque é normal. Se se instala e se aprofunda, é porque nos infectou, tortura e aprisiona.
Ódio, vingança, perdão e esquecimento têm relações próximas, mas nunca estão juntos.  O ódio está no subconsciente, difícil de ser excluído, é humano; vingança, perdão  e esquecimento são opções, estão no consciente. O ser humano não é um animal que, alimentado a vida inteira, depois devora o seu tratador.  Se o faz, é por opção, é consciente.
O ódio é relativo, alimenta e é alimentado. É um ser assexuado. Sendo relativo, não é um estágio permanente de prática. As relações humanas é que são absolutas, difíceis de reparar quando ruins. Se fazem mal, podem se socorrer no ódio. Seria, então, o subconsciente lugar para guardar a frase “todo mundo um dia morre”?
O ódio, quando desarquivado, pode se incorporar sob qualquer causa: política, pessoal, coletiva. Perdão e vingança são opções, que se praticadas podem gerar esquecimento (se perdoo, esqueço; se te vingas, esquece).  Antes de ambas, o distanciamento pode ser a razão, o caminho mais pacífico. Na religião, o perdão é a absolvição, a vingança é a condenação. No homem, o perdão é conforto, a vingança é efeito. 
Sobre o ódio, há as mais diversas interpretações. Na busca por pensamentos sobre esse sentimento do subconsciente, dois me chamaram a atenção. Um do médico austríaco  Arthur Schnitzler (1862/1931), de maneira geral: “O ódio, a inveja e o desejo de vingança ligam muitas vezes mais dois indivíduos um ao outro do que o podem fazer o amor e a amizade. … as relações negativas, essas são, a maior parte das vezes, absolutas e constantes. O ódio, a inveja e o desejo de vingança têm, poder-se-ia dizer, o sono mais ligeiro do que o amor. O menor sopro os desperta, enquanto que o amor e a amizade continuam tranquilamente a dormir, mesmo sob o trovão e os relâmpagos”.
O filósofo e escritor italiano  (1932/2016) Umberto Eco traduz o ódio nas relações ideológicas: “Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico.”
*Ayrton Maciel é jornalista. Escreve aos domingos.
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