Quando tocamos as pessoas, tocamos o mundo

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 27.08.2020

Será se nós percebemos que o mundo se comunica com a gente de várias formas e a gente, também, se comunica com o mundo? A nossa mente capta a realidade? Estamos atentos para observarmos o que comunicamos? E como expressamos a nossa comunicação nas relações com as pessoas e com o nosso entorno? Todos nós queremos ser felizes, pelo menos essa é a nossa expectativa e a da humanidade na busca da felicidade. Mesmo que os caminhos e processos sejam diferentes, mas a busca é ser feliz e fugir do sofrimento.

Arun Gandhi, neto de Mahatma Gandhi, narrou no prefácio do livro “Comunicação Não Violenta”, do psicólogo americano Marshall Rosenberg (2006), os ensinamentos do seu avô sobre como se relacionar de forma não violenta nas comunicações. Mahatma Gandhi foi ativista, militante humanista e deixou para o neto um legado fundamental para o entendimento das relações humanas quando ensinou que não reconhecemos a nossa violência, porque somos ignorantes em relação a ela.

O neto de Gandhi conta passagens muito importantes na sua vida que aprendeu com seu avô. Entre elas, a dimensão da não violência e o reconhecimento de que somos todos violentos e que precisamos mudar as nossas atitudes. É muito interessante essa percepção, pois só nos dispomos a mudar aquilo que identificamos e consideramos equivocado e incoerente. Achamos que não somos violentos, porque pensamos que ser violentos se refere somente a  matar, espancar, bater etc. Contudo, existem vários tipos de violências e para além da violência física, é possível matar, também, emocionalmente, psiquicamente, quando ofendemos, xingamos, caluniamos, estigmatizamos, excluímos, negamos o outro; quando somos rudes, ásperos, indelicados, grosseiros, julgamos, violentamos direitos, segregamos, desqualificamos, zombamos, nos omitimos, silenciamos, entre tantas outras violências.

Arun, seguindo os ensinamentos de Gandhi, seu avô, aprendeu com a metáfora da “arvore genealógica da violência” a entender melhor a não violência e, também, a violência que impera no mundo. Todas as noites, Gandhi ajudava seu neto a analisar os acontecimentos do dia. Assim, Arun relatava o que fizera aos outros, o que leu, o que viu. Ele registrava na árvore da violência, os tipos de violência que infligia as outras pessoas. Se física, se passiva. Em pouco tempo, a parede do quarto estava grafada com registros de violências passivas. Essa era a violência de caráter emocional que deixava marcas de sofrimentos cruciais na pessoa e essa, segundo Gandhi, era mais danosa que a violência física, pois, como explicava o avô de Arun, a violência passiva gerava raiva na vítima, e, assim, essa pessoa integrante de uma comunidade respondia violentamente no grupo, nas suas relações. Dessa forma, a violência passiva gera violência física. Questiona Gandhi: como apagar um incêndio se não suprimirmos o combustível que alimenta as chamas?

As mudanças só acontecerão se nós mesmos formos o vetor dessas mudanças, como ensinou Gandhi. Do contrário, nada ocorrerá. Não podemos aspirar mudanças esperando apenas pelas outras pessoas. A não-violência não é uma estratégia que usamos hoje e amanhã esquecemos, ela é uma ferramenta permanente. A não violência não vislumbra que nos tornemos doces, passivos, mas que não alimentemos concepções negativas. Que não caíamos no individualismo e ideias autocentradas.

“A linguagem é muito poderosa. Ela não apenas descreve a realidade. Ela cria a realidade que descreve.”

A não violência é uma mudança de paradigma. É uma atitude de permitirmos que sejamos nutridos pelo amor, pelo respeito, pela compreensão, pela compaixão, pela gratidão, pela generosidade. Imbuídos dessa energia da amorosidade, refletiremos a nossa comunicação com o mundo. A nossa linguagem é uma das formas de operarmos uma mudança significativa. Eu sempre me lembro de expressar que aquilo que comunicamos ao nos dirigirmos a uma pessoa, também toca o mundo. A nossa comunicação fica grafada na pessoa e essa leva esse acervo humano de alguma forma consigo, deixando rastros no seu caminhar. Assim, aquilo que registramos em alguém é a nossa marca, é como comunicamos ao mundo. Estejamos atentos no ato de falar, como alertou Desmond Tutu, Nobel da Paz, “A linguagem é muito poderosa. Ela não apenas descreve a realidade. Ela cria a realidade que descreve.”

Etty  Hillesum foi uma jovem judia cujos diários descrevem a sua vida com a ocupação alemã. Viveu em campo de concentração nazista e mesmo nessa condição totalmente adversa, terrível, a jovem relata, na obra de Marshall Rosenberg (2006,  p.20), que ao ser interpelada aos gritos por um jovem oficial da Gestapo – polícia secreta do Estado alemão – antes de ela ficar indignada, sente compaixão por aquele oficial e sentiu desejo de perguntar: “o senhor teve uma infância infeliz, brigou com a namorada”? É salutar nos perguntarmos por que algumas pessoas, como reflete Rosenberg, permanecem integradas com sua natureza compassiva, mesmo em situações limite, mesmo em circunstâncias extremas?

A Comunicação Não Violenta (CNV) se caracteriza pela abordagem específica da comunicação, do falar e ouvir com o coração. Ligando-se a nós mesmos e a outras pessoas, como diz Marshall Rosenberg (2006, p.20), de forma tal que permite que nossa (com) paixão aflore. Nessa interação com os escritos de Rosenberg, lembro-me do filósofo alemão Martin Heidegger, quando afirma que o desenraizamento do ser é que nos afasta de nossa essência humana. Ouso pensar, também, que talvez a compaixão e a generosidade da jovem Etty com a atitude atroz e desumana do oficial alemão, submetida às barbaridades dos campos de concentração nazista, se deva ao seu ser que permanecia totalmente enraizado em sua essência.

Fica esse convite; ao nos comunicarmos, ao tocarmos o mundo e estabelecermos nossas comunicações, procuremos nos lembrar o quanto o nosso ser está enraizado, o quanto a violência está fora do nosso coração. Embora não consideremos a forma de falarmos violenta, podemos estar violentando as subjetividades dos sujeitos e a nossa mesma, pois quando ferimos as outras pessoas, nos machucamos também. Não tem como lançarmos nossa mão no fogo e não chamuscar nada. A CNV nos ensina a desenvolvermos uma relação empática. A nos observarmos diariamente, repetidas vezes. Olharmos para os nossos comportamentos, atitudes, ações, nos reavaliarmos e refazer a nossa caminhada. A simples, eficaz e necessária pergunta precisa ser feita infinitas vezes, permanentemente: o que estou comunicando? Como estou comunicando? Estamos afetando as outras pessoas. Sempre tocamos o ser humano, até quando pensamos que não há toque, até na ausência, existe a marca do não vivido. Assim, de que forma estamos veiculando, imprimindo, registrando a nossa comunicação nas pessoas, no mundo? O que estamos deixando nos rastros humanos?

A CNV é um processo de comunicação multidimensional. Envolve a pessoa de formas múltiplas. Para imprimir no mundo, nas nossas relações com as pessoas uma linguagem da compaixão, de afetividade, de amorosidade, nós precisamos primeiro ressignificar as violências impostas a nós mesmos. Nos curar. Tem um adágio popular que diz com muita sabedoria: a gente só dá aquilo que tem. Faz todo o sentido. Como vamos oferecer ao outro o que não temos nem para nós mesmos?

Muitas vezes proferimos na nossa comunicação uma palavra mal dita, intitulada “palavra impensada”, por Luiz Schettini( 2010, p.36), na sua Obra “Pedagogia da Ternura. Diz ainda o psicólogo e professor Schettini que não existem “palavras impensadas”, elas sempre estão atreladas ao pensar. E somos responsáveis pelo nossos atos e atitudes. Existem, sim, palavras que não deveriam ser ditas pelo teor de adoecimento que transmite e pela dor emocional que impõe à pessoa que escuta.

Para  Humberto Maturana, neurobiólogo chileno, os seres humanos só existem na linguagem. Experiências que não estão na linguagem, não têm existência. Não há modo de fazer referência a elas, como afirma Maturana, segundo Marco Antônio Moreira (2004), na sua monografia “A  Epistemologia de Maturana” . O que acontece em nossas vidas mostra que não somos sistemas com uma estrutura fixa, mas um sistema com estrutura de trocas contínuas, que ocorrem de acordo com nossas interações. Tudo o que acontece com os seres vivos, ocorre por meio de modificações na nossa estrutura, diz Maturana. Viver é uma arte, sejamos sagazes, na visão de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: veredas: “O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia.” Ou seja, a vida é uma travessia num campo de experiências.

Assim, alguns caminhos e formas de agir podem contribuir nessas nossas aprendizagens da comunicação não violenta. Um deles é olhando para nós mesmos, nos enxergando efetivamente, mas não na visão narcísica, egoística e individualista, mas compassivamente, amorosamente, pensando em ser o melhor possível, em termos humanísticos, para ao se relacionar melhor consigo mesmo se relacionar também melhor com a outra pessoa. A ética da alteridade. Precisamos aprender a nos escutar; a estabelecer um diálogo interior; reconhecer nossos limites; compreender que somos finitos; enxergar as nossas possibilidades na seara da vida. Também apreender e se permitir a compartilhar o afeto, as nossas fragilidades, as múltiplas possibilidades na vida. Se permitir a comunicar o belo que a vida apresenta a todos nós. O mundo é envolto por atrocidades, perversidades, mas tem também as delicadezas da vida. Não deixemos que nossas comunicações violentas e desatentas passem despercebidas na lindeza do mundo.

Encerro, sem a intenção de concluir, com a linguagem comunicativa do poeta Rumi: “Para além das ideias do certo e errado, existe um campo. Eu me encontrarei com você lá”.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/ Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco.

Escreve às quintas-feiras.

Foto destaque: pt.wikipedia.org

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