(Com) Viver: encontros com a vida
Vera Lúcia Braga de Moura*
Em 03.09.2020
Conviver é aprender a nos relacionarmos. Como seres relacionais precisamos aprender a conviver com a gente mesmo, com as outras pessoas, com as coisas e situações que se apresentam para nós. Aprender a conviver com a natureza, com o mundo de uma forma harmoniosa.
Cada pessoa enxerga a vida e a outra pessoa com base em seus referenciais, crenças, (pre) conceitos, valores, princípios, visões de mundo. Nós costumamos nos perguntar como nos enxergamos diante da vida? Buscamos entender qual o nosso lugar no contexto humano? Numa determinada situação de conflito em que estejamos envolvidos, como enxergamos a outra pessoa que, também, está inserida na situação? Faço um convite para que verifiquemos o nosso entendimento do que é o ser humano e, também, apreciemos alguns aspectos das suas formas de agir.
Quando nos questionamos o que é o ser humano, comumente dizemos que é um ser “racional” e que essa característica o define diante dos outros animais. Dizemos que o ser humano é um ser pensante, portanto, racional. O biólogo chileno Humberto Maturana (1998, p.15) em sua obra, “Emoções e Linguagem na educação e na política”, diz que “ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional”.
As emoções nessa direção exercem uma função primordial nas condutas e formas de agir humanas. Emoções e sentimentos não significam a mesma coisa. Como ensina Humberto Maturana (1998, p.15), “do ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio de ação”. Isso quer dizer que de acordo com as emoções que estamos vivenciando, podemos agir de formas diferentes, isto é, esse agir pode ser mais ou menos assertivo. Assim, toda nossa ação tem fundamentos emocionais, como afirma Maturana.
Esse entrelaçamento entre a razão e a emoção traz para o humano um campo de possibilidades. Precisamos aprender a nos enxergar, nos observar e entendermos as nossas emoções considerando que elas incidem nas nossas maneiras de agir e interferem nas formas em que estabelecemos as nossas relações com as pessoas e com a vida em nosso entorno.
Observemos que quando agimos com raiva, é diferente de quando agimos de forma serena e tranquila. Daí a importância de educarmos os nossos olhares, as nossas emoções, nos educarmos para as nossas relações, para a vida. É importante e necessário nas nossas relações de convivências aprendermos a reconhecer as nossas emoções e vermos a melhor forma de lidar com elas para, dessa maneira, não estarmos agindo com violências e não machucarmos a outra pessoa e nem a nós mesmos.
Maturana (1998, p. 22) sustenta a ideia de que “não há ação humana sem uma emoção que a estabeleça como tal e a torne possível como ato”. O biólogo, com essa citação, diz que toda ação humana é movida pela emoção. E ainda afirma que nas interações humanas, no “plano da sensualidade em que surge a linguagem”, seria necessária uma emoção particular. E essa emoção é o sentimento do amor, assevera Maturana. Sem o amor não é possível convivências saudáveis, afetuosas, respeitosas. É o amor que promove as interações humanas, que reconhece a humanidade do outro e se reconhece também como partes interligadas. É o amor que possibilita um ser humano compreender o outro, reconhecer as suas singularidades. Acolher.
O conviver com base em interações dirigidas pelo amor “ampliam e estabilizam a convivência; as interações recorrentes na agressão interferem e rompem a convivência”, conforme reflete Maturana (1998, p 22). Nessa direção, é importante, como movimento empático de alteridade, observarmos as ações das outras pessoas, buscarmos identificar as suas emoções para entendimento das nossas humanidades. É importante nos questionarmos por que determinada pessoa agiu de tal forma. O que a levou a tais atos, como, por exemplo, atos de agressividades, pois esses podem levar a rompimentos de relações. E precisam ser vistos. Nós não podemos conhecer os sentimentos do outro, como diz Maturana, mas podemos identificar, ou nos familiarizar com as suas emoções, que são reações da química do corpo, são seu terreno movediço e aprender a lidar com tais situações relacionais. Nós dominamos as nossas emoções? Conseguimos identificá-las?
O sentimento que torna possível a história da humanidade é o amor, segundo Maturana. O amor é práxis. O amor é movimento. O amor é transformação social. O amor não é esse sentimento difícil que, muitas vezes, se quer veicular. O pensador reflete sobre esses estados emocionais embasados no amor. “O amor é constitutivo da vida humana, mas não é nada especial. O amor é o fundamento do social, mas nem toda convivência é social “, informa Maturana (1998, p.23). O amor é o que vai possibilitar que nós aceitemos o outro como legítimo, que nós compreendamos a outra pessoa como ela é, que respeitemos a sua forma de ser e estar no mundo. O amor é o sentimento que garante que aceitemos o outro na nossa convivência, por isso que Maturana diz que o amor é quem funda o social. Sem a aceitação do outro na convivência, não existe o componente social. Por isso, é tão importante nas nossas relações de convivências olharmos internamente para nós mesmos. Para promovermos os encontros humanos, necessitamos dessa interação e acolhimento humano para enxergarmos, também, o outro pelo amor.
Na vida humana, grande parte do sofrimento vem da negação do amor. Essa negação do amor gera exclusões, discriminações, preconceitos, estimas, violências, ou seja, ocorre a negação do outro nas convivências humanas. Se não se aceita o outro nos convívios humanos, não existe a dialogicidade, as trocas de experiências, o compartilhar humano, o social. O amor é o sentimento fundante da humanidade. As convivências, sem o amor, serão vazias, instrumentais, voláteis, faltará a estrutura de aceitação de uns pelos outros. Maturana (1998, p.25) anuncia que “os seres humanos são filhos do amor”. E que as relações sociais que não são pautadas pelo amor, não são relações sociais.
Assim, as relações humanas que não são baseadas no amor, não são relações sociais e nem as comunidades humanas que têm ausências de amor praticam relações sociais, porque as pessoas não se aceitam mutuamente, como reflete de forma instigante Maturana (1998, p.26). O autor não considera as relações humanas como sociais se desprovidas do amor, porque sem esse sentimento as relações de convivências humanas não serão pautadas pelo acolhimento, pela compreensão, pela aceitação do outro, pelo compartilhamento, mas, sim, pela incompreensão, pelo descaso, desrespeito, pela desatenção, ausência de cuidado, agressividades, violências. Se não se aceita o outro como “legitimo” nas convivências, essas não são comunidades sociais, como ainda ressalta o estudioso.
O biólogo diz também que “toda história individual humana é sempre uma epigênese na convivência humana”. Isso implica dizer que nossas histórias individuais se entrelaçam com a historicidade humana. Essa é composta com partes de todos nós, por isso, a perspectiva de unicidade. E nossas ignorâncias e incompreensões refletem muitas exclusões, violências e sofrimentos. Não conseguimos ter o entendimento de que uns se apoiam nos outros feito feixes de bambu; se um cair, cai também parte de nós enquanto comunidade humana. Daí vêm os desequilíbrios das sociedades e comunidades humanas e a violência impera soberana, como reflexo do desamor acometendo todos nós.
A linguagem aparece como necessidade da interação humana; o amor precede a linguagem. Experiências relacionais nos mostram bem isso quando determinados sentimentos e emoções só se efetivam na relação genuína com o outro. O (com) viver provocando encontros com a vida, promovendo alteridades e amorosidades é possível se nos educarmos. O conviver nos possibilita múltiplas aprendizagens. Esse é um processo permanente. As convivências são grandes laboratórios humanos nos quais nutridos com o amor podemos construir outra configuração relacional, na qual o ser humano se torne o centro da vida. Que as convivências humanas promovam relações dialógicas e sejam o lugar do encontro, do sonho, das transformações sociais e do encantamento pela vida. Finalizamos, assim, com uma das célebres frases de Milan Kundera em sua obra “A Insustentável Leveza do Ser”. Ele afirma, na propositura de um redesenho da natureza humana, do autoconhecimento e da solidariedade para com o outro que “O valor de um ser humano reside na capacidade de ir além dele próprio, de sair de dentro de si próprio, de existir dentro de si próprio e para as outras pessoas.”
*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/ Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: brasilescola.uol.com.br
Importante artigo para pensarmos: voltamos à barbárie ou nunca saímos dela? Os acontecimentos em distintos lugares, aqui no Brasil e em diversas localidades do planeta, e os novos conhecimentos, estudos etc. estão gerando uma indagação, provocação: nunca ela, a barbárie, nos deixou?
É melhor ficamos com Milton Nascimento (Coração Civil).
Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade dos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Querido Fernando seu comentário é muito instigante e reflexivo . Sim, a barbárie , será se saímos dela? Ela nos persegue? Ou precisamos fazer o movimento de amor para romper com a mesma? Bela e profunda provocação!!! Parabéns! Abraço! Ah! Milton Nascimento é um capítulo à parte! Me sinto contemplada com a sua utopia! Milton, eterno Milton!
Lindo texto! Uma proposta de ressignificação da vida!
Obrigada Maelda! Isso, fazer uma outra caminhada! Beijos.