A fome outra vez
Mirtes Cordeiro*
Em 21.09.2020
O Brasil passou a figurar novamente no mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU). A pandemia abriu a porta da nossa desigualdade e escancarou todas as mazelas, algumas ainda guardadas, quase imperceptíveis aos olhos, protegidas por versões capengas sobre a nossa realidade, como a desnutrição.
Em 2018, a Oxfam Brasil, em parceria com a Agência Pública, ofereceu microbolsas para a produção das 7 reportagens sobre o tema. As produções mostraram que, já naquele momento, a volta da fome no Brasil era uma realidade. O país saiu do Mapa da Fome da ONU em 2014, fruto de políticas públicas de enfrentamento à pobreza extrema. Esse mapa é composto por países com mais de 5% da população em pobreza extrema e é utilizado pela ONU para concentrar medidas e projetos para erradicar a fome. (OXFAN Brasil)
No entanto, a fome no Brasil ainda é uma realidade, como mostram os dados do último relatório da FAO (agência da ONU para agricultura e segurança alimentar), que indica que no Brasil, 2,5% da população passou fome em 2017, o que corresponde a 5,2 milhões de pessoas.
Depois de recuar em mais da metade em uma década, a fome voltou a se alastrar pelo Brasil. Em cinco anos, aumentou em cerca de 3 milhões o número de pessoas sem acesso regular à alimentação básica, chegando a, pelo menos, cerca de 10,3 milhões o contingente nesta situação. É o que apontam os dados divulgados nesta quinta-feira (17) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A fome no Brasil se constitui em problema antigo e complexo, tendo origem na desigualdade extrema que massacra a população pobre e pode ser caracterizada como um dos piores problemas no mundo, porque nega ao ser humano um direito básico, o de alimentar o seu corpo para seguir vivendo. Uma criança que passa fome, não recebe alimentação diária cuja energia e nutrientes sejam suficientes para a manutenção do seu organismo, não se desenvolverá física e intelectualmente. Portanto, um país que não consegue alimentar suas crianças, será uma nação fraca intelectualmente e terá uma população com baixíssima expectativa de vida.
A fome é uma velha conhecida dos nordestinos, que desde a colonização conviveram com a concentração da terra para a implantação de grandes fazendas de gado bovino, sem o domínio do conhecimento necessário ao desenvolvimento de regiões semiáridas onde o acesso à água sempre se deu de forma diferenciada. A concentração fundiária dificultou a produção da cultura de sobrevivência, feijão, milho, arroz e criou um sistema perverso de concentração de renda.
Não é à toa que nordestinos ficaram conhecidos como retirantes pelo país inteiro. Quando não havia produção agrícola em seus roçados ou pequenas fazendas de gado bovino ou caprino, as famílias saiam, ou seja, se retiravam dos seus locais de moradia para outros lugares, movidos pela falta de água, pela morte dos animais e pela fome. O destino era sempre as cidades onde se agregavam aos serviços que lhes possibilitavam a sobrevivência.
Foi assim com os retirantes povoando a Amazônia, fornecendo mão de obra para a indústria em São Paulo e enquanto candangos, construindo Brasília.
Só que até virem à tona os estudos de Josué de Castro (Geografia da Fome), creditava-se como causa principal para a fome as condições climáticas. Castro caracterizou seu pensamento por romper com algumas falsas convicções que imperavam em seu período (e que ainda se fazem presentes nos dias atuais) de que a fome e a miséria do mundo eram resultantes do excesso populacional e da escassez de recursos naturais. Em suas obras, provou que a questão da fome não se tratava do quantitativo de alimentos ou do número de habitantes, mas sim da má distribuição das riquezas, concentradas cada vez mais nas mãos de menos pessoas.
Neste momento em que sofremos o desmanche das políticas públicas capazes de garantir os direitos de cidadania para a população brasileira, voltamos a conviver com essa ameaça tão funesta. Para isso, aconteceu o esvaziamento das políticas voltadas para a agricultura familiar, com consequência para o Programa de Aquisição de Alimentos PAA. Também foi desestruturado o Conselho Nacional de Alimentação e Nutrição, o que expressa a visão simplista, atrasada do atual governo federal sobre as suas responsabilidades. Bolsonaro quer um pais pobre, triste, assustado, violento e preconceituoso.
O IBGE classifica o problema da fome em três níveis nomeados de “níveis de insegurança alimentar”. São eles, Leve que combina a necessidade de qualidade e quantidade; Moderado, quando existe a limitação de quantidade e Grave, quando existe a fome decorrente da falta de alimentos.
Segundo o IBGE, embora esteja mais radicado em determinadas regiões, o problema existe em todo o País. O Nordeste é a região do Brasil onde esse problema é mais grave, seguindo-se a região Norte.
No Maranhão, mais de 60% da população passa por dificuldades para se alimentar em condições. Segue-se Piauí, Amazonas e Pará. Em situação grave, o Acre é o estado que mais se destaca.
O problema da fome incide em 6,3% na zona rural contra 3,1% detectado na zona urbana.
Não podemos concordar com o rumo das políticas que reduzem a capacidade de alimentos para o nosso povo. O país bate recorde na produção de grãos, soja e milho para exportação. Atende a política econômica do governo mas não alimenta as famílias brasileiras pobres e desempregadas que vivem na periferia urbana e em áreas rurais.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: catracalivre.com.br
Ótimo artigo Mirtes! Sim, o primeiro direito humano é a vida. Com fome esse direito é violado!
Lúcido, o artigo retrata como a falta de foco e o descaso com políticas públicas permite a volta de mazelas, tidas como erradicadas. Some-se a isso a fome o retorno de doenças por falta de cobertura vacinal, violência… Sem dúvida, é um hiato de humanidade.