As cadeiras na calçada
Douglas Menezes
Em 26.09.2020 (em memória)
E por que essa febre agora? Essa de repente vontade de se contar? A ninguém interessa os meus fantasmas. Os fantasmas são meus e as cadeiras estão lá, da Matriz a Santo Amaro. Dona Tarcila à janela e seu Esmeraldino pigarreando com o pai do menino, falando do bangue-bangue e dizendo da política da província.
São pigarros de dignidade no silêncio da noite de estrelas e da lua cheia de um lugar que já morreu. A minha cidade fantasma que insisto em reviver. As cadeiras estão na calçada.
Elas conversam sem medo, ninando o menino sob o testemunho dos astros desse céu, ainda com a cana chegando aos quintais de tão variados cheiros e cores.
Dona Estela desfila opiniões. A mãe do menino sorri aquele riso bonito de Terezinha de Tune. São dezenas de cadeiras a trocarem boa noite, a comentarem da cidade banzeira de vida arrastada. O sino de Santo Amaro chama ao terço. E as cadeiras se inquietam ouvindo o aviso do cinema para o início da sessão.
Já a cidade mudava e as cadeiras entendiam o tempo a chegar com as mudanças das chaminés.
As primeiras notícias da violência, hoje tão insuportáveis, eram aperitivos às conversas dos vizinhos. Nada que fosse prenúncio ou abalasse a tranquilidade daquele mundo tão vivo, mas parecendo morto.
A minha cidade, sobretudo humana, onde se amava sem saber que era amor. Um instinto de solidariedade e carinho na troca de gentilezas e mimos entre os conhecidos. Nem se notavam as oligarquias que mandavam na política e esmagavam a senzala confinada nos morros e na nascente periferia.
A política seguia quase sem escândalos, diferente do que se vê hoje.
E essa febre que não baixa. A confundir imagens. A avistar João doido ao lado da Matriz, nosso louco oficial, como diria Ariano. A farmácia de Chico Mendes, seu Duca, Sargento Lauro, Dona Tereza. Terezinha de Isamberte, Sissi e João Belarmino, Amarina e Figueiredo, dona Amélia, entre mais alguns, que a memória enfraquecida insiste em esquecer. A venda do sargento Hermias, Hamilton e dona Augusta.
Era esse tempo de dar saudade, palavra quase em extinção. às noites, ouviam-se grilos e as cadeiras da Matriz animavam a vida quase parada. Tempo dos meus fantasmas, tão vivos nessa memória quase a ponto de morrer.
NOTA DO EDITOR
Com a publicação da crônica As cadeiras na calçada, o blog Falou e Disse dá sequência às homenagens àquele que é considerado o maior cronista do Cabo de Santo Agostinho (PE) nas últimas três ou quatro décadas. Professor, poeta, escritor, um operário das letras, Douglas Menezes completaria 67 anos de idade no dia 23.09, mas se despediu da cidade e da gente que tanto amou no dia 26 de fevereiro deste ano, na Quarta-feira de Cinzas,
A crônica As cadeiras na calçada ocupa as páginas 51 e 52 do livro Uma canção, por favor, último livro de crônicas publicado por Douglas Menezes, em agosto do ano passado. São 46 crônicas que o blog publicará a cada dia. A homenagem foi iniciada no dia do seu aniversário (23.09), com a publicação da reportagem Douglas Menezes, um operário das letras.