Professora leva afeto a crianças com o ‘kit abraço’

Por

José Ambrósio dos Santos

Em 07.10.2020

Com o trabalho presencial dos pais Tiago (meu filho) e Priscila, tenho acompanhado em dias alternados a atuação dedicada de professoras para manter a atenção das crianças durante as aulas remotas, observando a minha netinha Letícia, de apenas cinco anos e três meses. “Estou com saudades dos meus coleguinhas”, reclamou Letícia já algumas vezes, nem sempre conseguindo manter-se atenta às explicações das professoras a partir da telinha do notebook.

“Ela sente saudades da escola, das brincadeiras”, explica a avó Edna Guedes, uma das gestoras da Escola Municipal Senador Paulo Guerra, em Ponte dos Carvalhos, no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife. As aulas presenciais estão suspensas desde o início da pandemia do novo coronavírus e ainda não há previsão de retorno.

E foi a saudade dos alunos que fez a professora do Ensino Fundamental Maura Silva, de 47 anos, criar o ‘kit abraço’. Cansada de ver os alunos somente por meio da tela de um computador, ela comprou e confeccionou dezenas de capas de chuva, máscaras e luvas descartáveis para visitar, pessoalmente, 55 alunos da rede municipal de ensino da Prefeitura do Rio de Janeiro (RJ).

Em dois dias do mês de julho, abraçou dezenas de estudantes que vivem nos bairros periféricos de Padre Miguel, Realengo e Bangu – sempre protegendo a si mesma e as crianças para evitar infecção pela COVID-19. A atitude deixou alunos, pais e mães emocionados.

Foto: acervo pessoal

“Foram sete horas de carreata. Só não visitei mais alunos (no mesmo dia), porque muitos não estavam em casa”, contou a professora em entrevista ao Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio).

Os encontros foram combinados com antecedência com os pais dos alunos, que concordaram em proteger as crianças com as máscaras e as capas de chuva. Quando chegava às residências, a professora tocava músicas usadas em sala de aula. Era a dica para os pais levarem as crianças ao portão de casa.

“É impossível lembrar disso e não chorar”, disse a professora ao detalhar a experiência. “Tive vontade de não soltar mais, de continuar abraçando. Consegui me lembrar do cheiro de cada um, do cabelo, da mãozinha”, reforçou.

Nesses mais de sete meses de pandemia foram desenvolvidas muitas formas de se aproximar dos alunos e levar o ensino àqueles que não têm como acompanhar a modalidade remota, por residirem em áreas sem acesso à internet e também os mais vulneráveis. O ‘kit abraço’ chama atenção também pela compreensão e envolvimento afetivo da professora Maura Silva.

“Não acredito em uma pedagogia sem afeto. Não é possível fazer uma criança querer descobrir o mundo ou descobrir suas potencialidades se ela não for envolvida pelo coração.” Cerca de 35 milhões de crianças e adolescentes longe das salas de aula.

Maura Silva relatou algumas das dificuldades do ensino a distância, agravadas pela dificuldade de acesso à Internet. “Tenho 57 alunos nas duas turmas. Nem todos conseguem se conectar”, declarou.

“Há mães que não têm Internet, mas colocam crédito (no celular) para usar os dados móveis na hora da aula. Algumas pedem a senha da Internet dos vizinhos”, contou. “Também há aquelas que trabalham. Essas eu atendo à noite.”

A jornada de trabalho de Maura Silva também está mais intensa, uma vez que ela se esforça para atender as necessidades de pais e alunos. “Tenho pais semianalfabetos, analfabetos funcionais, que não sabem muito bem como explicar, como chegar à criança, como falar com ela para fazer aquele trabalho.”

“O tempo todo eles me solicitam porque não entendem alguma coisa. A dificuldade é essa. O pai não está preparado para o contato via computador e a criança também não.”

Foto: acervo pessoal

A pandemia de COVID-19 criou a maior perturbação educacional da história e o fechamento prolongado de escolas pode consolidar ainda mais as desigualdades no acesso à aprendizagem, alertou no início deste mês o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres.

A ONU estima que a pandemia tenha afetado mais de 1 bilhão de estudantes em todo o mundo. Apesar dos esforços para continuar aprendendo durante a crise, inclusive por meio de aulas por rádio, televisão e online, muitos ainda não estão sendo alcançados.

Maura Silva dedica a maior parte de seu dia a tornar a experiência do ensino a distância menos desgastante. Para isso, transformou a sala de estar de sua casa em uma sala de aula. Além disso, investe em atividades que os alunos possam realizar em família.

“Peço que assistam a filmes, mando um livro por Whatsapp que eles possam ler juntos e me mandar um retorno. (…) Peço coisas que sejam possíveis, porque esse aprendizado agora é da família também, não só da criança”, contou.

Na opinião da professora, a escola deve se abrir para as famílias dos alunos, mesmo após o fim da pandemia. “A função do professor é tirar aquela cortina do mundo e fazer com que as crianças percebam que têm um mundo imenso lá fora do portão de casa e da escola, e que está dentro dela (a possibilidade) de descobrir o que fazer. E a família tem que fazer parte desse processo.”

Apesar de prever realizar novas visitas às residências dos estudantes, Maura Silva diz desejar revê-los em breve em sala de aula, quando for possível fazê-lo. “Porque é ali que as coisas mágicas acontecem, é ali o nosso mundo”, concluiu.

*José Ambrósio dos Santos é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras.

Foto destaque: O evento surpresa foi combinado com antecedência com os pais dos alunos, que concordaram em proteger as crianças com as máscaras e as capas de chuva. Foto: Acervo Pessoal