A fratura humana que nos distancia da natureza
Nelino Azevedo de Mendonça*
Em 07.10.2020
Ao se perceber um ser-no-mundo e um ser-com-outros, o ser humano se diferencia dos outros animais, pois não apenas sabe do mundo, mas sabe o porquê de saber do mundo. Essa capacidade que vai além daquilo que Teilhard de Chardin denominou de hominização, pois já não é um mero processo natural, coloca o ser humano num permanente processo de humanidade, pois é marcado pela integração histórica e cultural de homens e mulheres no mundo. Essa consciência do mundo e de si próprio torna o ser humano um ser de práxis, de integração, de intencionalidade. O mundo humano já não é um espaço à mercê das leis naturais ou do transcendente, mas uma cosmogênese e antropogênese, pois se constitui num constante processo de criação e recriação.
Essa condição de humanidade dos seres humanos num permanente devir é o que exige dos sujeitos um compromisso/chamamento para interferir no mundo, de forma que essa interferência seja construtora de humanização. É nesse sentido que se entende o papel transformador a ser desempenhado por homens e mulheres, na intenção da realização de seus sonhos e desejos. No entanto, essa ação transformadora nem sempre caminha na direção de um processo humanizador, e quando isso ocorre tem como resultado ações deletérias para o ser humano, para a sociedade e para o planeta.
A passagem do ser humano do processo de hominização (um primeiro despertar de si mesmo, reconhecendo-se um ser num dado lugar, ainda como um processo natural), para o processo de humanização (já se insere no mundo como um processo cultural e histórico), marca uma atitude de espanto que o ser humano passa a ter diante do mundo. A estranheza a princípio nos assombra, mas ao mesmo tempo nos impulsiona em busca da sabedoria, do conhecimento. Como afirma Aristóteles, o espanto é uma condição necessária para o surgimento da filosofia.
Pelo fato de vivermos a nossa existência no mundo, e de certa forma nos habituarmos com isso, o mundo nunca nos parece algo natural. O mundo é sempre o outro, mesmo que nos percebamos como parte integrante dele. Desse modo, sempre partimos do pressuposto de que a natureza é diferenciada de cada um de nós. A natureza é sempre o outro com quem nos defrontamos e interagimos, nunca algo que faz parte do que somos ou, de outro modo, não integramos a natureza como parte intrínseca a ela. Essa é uma das razões para mantermos uma relação tão degradante com a natureza. A supervalorização do consumo e do capital, por exemplo, vem gradativamente instituindo politicas perversas de destruição de ecossistemas e de exploração exacerbada dos recursos naturais.
Esse primeiro despertar do ser humano, que designamos de hominização, foi o caminho que nos impulsionou para nos constituirmos autoconscientes e isso foi determinante para nos diferenciarmos das outras espécies animais e estabelecermos processos de alteridade. As outras espécies animais vivem uma relação natural com o mundo e, por essa razão, são a própria natureza e, consequentemente, não experenciam processos de alteridade, inclusive pelo fato de não estabelecerem nenhuma forma de distanciamento com a natureza. O mundo não passa de um suporte, pois para elas o mundo não é uma existência. O ser humano, ao saber do mundo e ao saber o porquê de saber do mundo, cria um distanciamento com esse mundo e, dessa maneira, estabelece um afastamento que o arranca dessa condição de ser parte integrante desse próprio mundo, gerando um estranhamento que faz do mundo o outro distante de si. Esse processo de distanciamento é o podemos chamar de fratura humana (Castor Bartolomé Ruiz, 2006), no livro As encruzilhadas do Humanismo, Vozes.
Essa fratura produz um distanciamento e, ao mesmo tempo, um estranhamento. É esse estranhamento com o mundo que nos coloca, essencialmente, numa necessidade existencial de nos inserirmos no mundo. Sem isso, simplesmente, não existimos. Para Ruiz (2006, p. 49), o ser humano “nunca mais voltará a ter uma junção plena com a natureza da qual emergiu, mas, para existir, necessita inserir-se no mundo ainda que não possa mais fazê-lo de modo natural”. Certamente, essa relação do ser humano com o mundo não se dará como algo natural, por outro lado, a necessidade imperante de estabelecer relações com o mundo exige do ser humano uma atitude de aproximação com a natureza e isso não vai ocorrer como um mero processo de adaptação genética ou instintiva como ocorre com os outros animais, mas através de uma mediação significativa, pois ela se dá dentro de um contexto de sentidos e interpretação.
Essa fratura humana evidenciou um processo de perdas ao distanciar o ser humano do mundo e ao deslocá-lo da natureza, arrancando-o dolorosamente de sua condição de ser parte integrante da natureza e distanciando-o do mundo. Por outro lado, foi essa fratura que possibilitou a condição humana da autoconsciência e de consciência de mundo, como também a possibilidade de experenciarmos a alteridade a partir do nosso reconhecimento de si mesmo e do outro como pessoa. O próprio fato de reconhecermos o mundo como o outro já evidencia a experienciação da alteridade. Contudo, foi também essa cisão entre o ser humano e o mundo, essa fratura que se estabeleceu e desgarrou o ser humano da natureza que possibilitou a consciência da finitude humana. Isso gerou uma permanente busca de sentido da vida mediante a condição de finitude. Busca e angústia. Busca da plenitude, da imortalidade e angústia da certeza da finitude, sabendo que não se pode escapar dessa fratura humana.
*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação, membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.
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Muito interessante Nelino! A perspectiva “que sabe que sabe” permite uma dimensão consciente ao ser humano ao mesmo tempo que o distancia da natureza e da sua condição humana no mundo. Muito oportuno o que vc traz no texto como fratura humana que denota uma contradição humana ao mesmo tempo permite a prática da alteridade! Parabéns por essa elaboração!
Obrigado Vera. Agradeço por seu excelente comentário.
Amigo, Nelino
Dois sentimos ou impressões do seu artigo. Um primeiro guarda relação a perspectiva traçada da “fratura humana” e a relação com a natureza. Mas, fiquei intrigado. Como fazer a ponta com os (des)caminhos da humanidade? Seria um outro artigo?