Empatia
Mário Gouveia Júnior*
Em 09.10.2020
Graças às aventuras de Indiana Jones, personagem de ficção criado por George Lucas e Steven Spielberg, desde criança, sempre fui fascinado pela Arqueologia. Talvez por isso eu tenha me interessado tanto ao ponto de me tornar um contador de histórias e também um professor de História. Naturalmente há significativas diferenças entre o que as tramas cinematográficas mostram e em que, realmente, consiste o ofício do arqueólogo. O que não impede a existência de descobertas preciosas.
Margaret Mead, antropóloga estadunidense, costumava afirmar que um fêmur recalcificado, datado em 15 mil anos e encontrado em uma escavação arqueológica era o primeiro vestígio da civilização humana. O processo de cura de uma fratura desse porte pode levar meses para acontecer; o que significa que essa pessoa, ao invés de ser abandonada à própria sorte, foi cuidada, abrigada e alimentada por outras pessoas. Nesse sentido, para Mead, o que faz de nós humanos é a empatia e o cuidado com o outro.
Esses processos do que se convencionou, posteriormente, chamar de assistência variaram ao longo do tempo e de cultura para cultura, de modo que não se possa remontar às suas origens. Muito mais importante, seguindo os pressupostos do historiador italiano Carlo Ginzburg, seria considerarmos fios, rastros e trajetórias do que pontos de partida e chegada. Nesse sentido, compreendemos a existência de muitas civilizações que percebiam as enfermidades de maneiras diferentes; seja como manifestações corpóreas naturais seja como estigmas demoníacos ou ainda castigos divinos. A visão, assim, de cada grupo cultural pode ter contribuído, ou não, para que as práticas ou artes de curar tenham se desenvolvido com mais ou menos força.
No Brasil, essas práticas de assistência a doentes surgem desde os tempos coloniais, com as Santas Casas de Misericórdia. Destacam-se os estudos terapêuticos à base de ervas medicinais desenvolvidos pelo Padre José de Anchieta (1534-1597), o que nos faz inferir possíveis intercâmbios entre os conhecimentos europeus e dos povos nativos. Nesse sentido, diga-se de passagem, o historiador e filósofo indígena Ailton Krenak diz que, desde os primeiros contatos entre as duas civilizações, no início do século XVI, os povos originários teriam acolhido muitos navegadores que chegavam famélicos e doentes, tratando de alimentá-los e cuidar de suas enfermidades com os conhecimentos disponíveis naquele Novo Mundo.
Quando a religião pôde ser dissociada do conhecimento científico sem que os pesquisadores fossem ameaçados ou punidos por seus ofícios, pensamentos e postulados, os conhecimentos no campo da saúde vivenciaram um processo de consolidação. Isso fez emergir novas técnicas que representaram inclusive maiores expectativas de vida para aqueles grupos humanos. Mas foi sobretudo na primeira metade do século XX, e em decorrência dos grandes conflitos mundiais que a Enfermagem tornou-se atividade relevante enquanto ciência e profissão.
Findado o cenário de guerra europeu, em 1945, Winston Churchill dissera, em agradecimento aos pilotos de sua Royal Air Force que rechaçaram a então poderosa Luftwaffe nazista, que “nunca tantos deveram tanto a tão poucos”. Essa mesma frase de gratidão também poderia perfeitamente se estender às seguidoras da enfermeira ítalo-britânica Florence Nightingale.
Em tempo, Nightingale foi a fundadora da Enfermagem moderna, destacando-se como pioneira no tratamento de feridos nas batalhas da Guerra da Criméia (1853-1856); na fundação da Escola de Enfermagem, no Hospital Saint Thomas, em Londres, em 1860; e na publicação de centenas de livros, panfletos e relatórios baseados no empirismo e nas experiências vivenciadas no âmbito da enfermagem, utilizando-se de precursores métodos estatísticos, que muito contribuíram para a redução da mortalidade dos feridos.
Grande referência para a Enfermagem no Brasil, que, como a colega ítalo-britânica, precisou romper os preconceitos da época, foi a baiana Anna Nery, que, por sua dedicação no tratamento dos feridos na Guerra do Paraguai (1864-1870), em hospitais improvisados, recebe reconhecimento do governo imperial brasileiro, com medalhas e pensão militar. Em 1923, em homenagem póstuma, empresta seu nome à primeira Escola de Enfermagem fundada no Brasil, em 1923. Mais recentemente, por meio da Lei Federal de nº 12.105, de 2 de dezembro de 2009, Anna Nery tornou-se a primeira mulher a entrar para o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Liberdade e da Democracia.
Outra importante personagem da Enfermagem foi Edith Fraenkel, que já atuava pela Cruz Vermelha Brasileira, quando, em 1918, dedicou-se à luta contra a chamada gripe espanhola, liderada pelo médico Carlos Chagas. Também dedicou suas atenções ao tratamento da tuberculose ao ponto de fazer estudos na área na Filadélfia, entre 1922 e 1925, ano que voltou formada para se tornar a primeira professora da Escola de Enfermagem Anna Nery.
Data de 12 de julho de 1973 a criação dos Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem. Por meio do decreto-lei nº 5.905, estes órgãos foram legitimados como disciplinadores do exercício da profissão do enfermeiro e das demais profissões compreendidas nos serviços de enfermagem. Chama atenção o termo disciplinadores, sobretudo num contexto político reconhecidamente autoritário em que facilmente disciplina podia ser confundida com vigilância e punição. Para muitos, a melhor forma de garantir a ordem estabelecida por um grupo e o progresso desejado por este mesmo grupo é através de rígida coerção, e, por vezes, draconianas sanções.
Sou adepto à corrente historiográfica que percebe nos processos históricos mais continuidades do que rupturas; e nesse sentido, quando consultamos o endereço eletrônico do Conselho Regional de Enfermagem de Pernambuco (COREN-PE), identificamos como missão apresentada Fiscalizar e disciplinar o exercício profissional da enfermagem amparado por requisitos éticos e legais. Já em sua visão, percebe-se a ênfase conferida à valorização do profissional da enfermagem por meio de fiscalizações do exercício profissional de modo a evitar imprudências, negligências e imperícias. Embora considere como uma de suas palavras-chave o termo solidariedade, fica implícito que o entendimento externalizado por esse Conselho tem um viés mais punitivo do que acolhedor.
Paulo Freire defendia que a melhor forma de transformar os sujeitos, e, por conseguinte, a sociedade, era por meio de uma educação libertadora. E nesse exercício de educação não se pode perder de vista o afeto e o acolhimento nos processos de ensino e aprendizagem. Se qualquer órgão que busque excelência em seus serviços se impõe por meio de sanções, multas, suspensões ao invés de se ancorar nas práticas de empatia, das quais já tratamos no início do texto, e que nos aproximam daquilo que nos faz humanos e civilizados, algo parece não estar adequado. Infelizmente esse conceito de fiscalização não é prerrogativa exclusiva deste Conselho, mas, se não de todos, de sua maioria.
Vivenciando atualmente um contexto democrático, apesar de tantos apesares no cenário político atual, ainda temos a oportunidade de fazer valer nossas vozes e nossos direitos. É fundamental, nesse contexto, a efetiva adesão em prol de uma gestão democrática, participativa, transparente, eficiente e que esteja focada nas necessidades da categoria à qual representa. Isso porque cidadania, ao contrário do que muito se disseminou, não reside apenas no reconhecimento de direitos e deveres, como memorização de cartilha a ser reproduzida a ferro e a fogo, mas, na possibilidade de cada cidadão-profissional se fazer ouvir ou se sentir representado pelos órgãos que legitimam as práticas de seu ofício.
Importa, ainda, a valorização profissional por meio do estímulo à formação continuada, bem como da garantia de melhores salários, condições de trabalho e jornadas de trabalho semanais mais humanizadas como forma de mitigar a existência de infrações éticas. Isto é, ao invés de se concentrar em punir os erros, soa mais adequado conferir melhor qualidade de vida e maiores graus de satisfação para os profissionais; sobretudo na área da saúde, quando um erro pode representar a perda de uma vida. Prevenção é sempre melhor que remédio! O profissional da Enfermagem, como todo e qualquer profissional, precisa se sentir acolhido e representado por seu Conselho.
Nos próximos dias 8 e 9 de novembro haverá eleições para que se constitua um novo Conselho Regional de Enfermagem em Pernambuco. É fundamental que os profissionais e as profissionais da área tomem parte nos debates e se interem do que está sendo proposto por cada uma das quatro chapas concorrentes. Eleger representantes políticos nada tem a ver com amizade ou troca de favores. É um ato que requer grande responsabilidade posto que traga grandes consequências. Vale, nesse sentido, a premissa de empoderamento, inclusão e participação direta nos processos que impactam as pessoas com deficiência e que pode perfeitamente ser importada para esse contexto: “nada para nós, sem nós”.
Perceber a atual situação dos profissionais da Enfermagem, tão aplaudidos e reconhecidos socialmente – embora pouco valorizados pelos setores patronais e chefes do Executivo governamental – no âmbito de uma pandemia jamais vista por nossa geração, e identificar necessidades de maiores conquistas, tratando de atrelá-las às propostas de cada um dos grupos, é um primeiro passo para que se alcance a efetiva mudança.
*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Mário, seu artigo é muito bom e problematiza a importância da empatia e da cidadania ativa. Uma sociedade equitativa e com justiça social precisa caminhar pelo viés da empatia. Parabéns.