Gosto e mau gosto

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 10.10.2020

— Quem tem ouvidos escuta o que quer.

As coisas são assim, quando se fala de música. Pelo menos numa democracia. Não eram assim nos 21 anos da Ditadura Civil-Militar do Brasil, de 1964 a 1985. Ninguém podia ouvir Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré (censurada de 1968 a 1979) nem Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil (proibida entre 1973 e 1978). Para citar apenas dois casos. A lista de obras e compositores amordaçados no período é vasta. Mas esse não é o tema da crônica. Voltemos a ele.

O direito de ouvir – o nome exato é “consumir” – o gênero musical que se escolhe, ou que pensa que se escolhe, está dentro dos princípios elementares do regime democrático. Como também está a crítica a sua qualidade artística.

Sou tão livre para escolher um tipo de música quanto alguém é livre para criticá-lo.

Quem pode impedir que milhares de jovens, e outros nem tão jovens assim, deem o entusiasmo de seus ouvidos ao gênero que se autointitula sertanejo? Ninguém. E é muito bom que seja assim, embora precise vir para a discussão o caráter ditatorial dos meios de comunicação de massa, que impõem gostos ou modismos musicais.

Igualmente, quem pode impedir que alguns velhos, e outros nem tão velhos assim, mostrem a indulgência artística desse dito estilo sertanejo? Melodias pobres, que evocam country de terceira – o country de primeira já é uma música de segunda. Letras paupérrimas, que nem supõem a sutileza das palavras nem sondam que existe uma coisa chamada poesia. Temas circulares de dor de cotovelo, agora maquiada como “sofrência”. Tudo isso enrolado numa voz de falsete capaz de irritar audições pacientes. Esses elementos compõem a fórmula precisa do enjoado xarope.

Mais que legítimo, é essencial que as gerações tenham seus artistas que as interpretem e representem. Só um artista contemporâneo sabe dizer naturalmente sua época. Noel Rosa não poderia compor Com açúcar e com afeto, como Chico não poderia conceber Último desejo. Não está em discussão o fingimento poético, segundo o qual o artista se desloca da sua época, com passos de recuo ou avanço. Aí teríamos casos de reconstrução arqueológica ou antecipação futurológica. Falo do cheiro do presente.

Valha a máxima: cada tempo, sua arte. Mas arte, não impostura.

Gosto se discute sim. O que não se discute é o inalienável direito ao gosto, mesmo ao péssimo gosto.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.