Nem tudo o que parece é

Por

Ayrton Maciel*

Em 11.10.2020

Algo que reluz pode ser cobre, a face pública pode ser máscara, a esperança pode ser a ilusão disfarçada, uma imagem pode ser a encenação do cinismo e a confiança pode se descobrir decepção. Na vida e nas relações humanas, a prudência é a melhor precaução, a tenhamos como principal conselheira. Na vida e na arte – como diz o moderno ditado – “cada uma no seu quadrado”, mesmo que uma imite a outra. Ou seja, tudo é possível, exceto o impossível.

Mas, pra quê encher tanta linguiça antes de comentar um fato? E de um personagem secundário? Porque nas relações humanas e no imaginário o engano é parceiro comum, que pode sair da sombra para a luz, de coadjuvante para protagonista ou pode também se recolher à falta de escrúpulos.

O ano é 2015. No auge da crise política do governo Dilma Rousseff, do PT, o então general da ativa e comandante militar do Sul, Hamilton Mourão, ensaia declarações, em clubes militares, com acusações de incompetência e de corrupção ao Executivo e insinuações sobre intervenção militar. Qualquer verdade existente não legitima manifestação política de militar da ativa. Primeiro erro. À época, Mourão chega a autorizar uma homenagem de oficiais militares – em um quartel – ao  coronel Brilhante Ustra, um conhecido torturador da ditadura militar – condenado pela Justiça – que comandou o Doi-Codi de São Paulo, sob o qual pesam mais de 500 denúncias, e que chegou a conduzir torturas à presa política Dilma Rousseff. Segundo erro. Para minimizar, Mourão é transferido pelo comandante do Exército, general Eduardo Vilas Bôas, para um cargo burocrático em Brasília.

Em 2017, com duas denúncias de corrupção contra Michel Temer, vice que liderou o impeachment de Dilma, o general Mourão volta a ameaçar com uma intervenção militar, durante palestra na maçonaria Grande Oriente do Brasil, no Distrito Federal. Temer, com todas as provas contra, acaba terminando o mandato, sob Mourão recolhido ao silêncio.

Em 2018, já na reserva, como vice na chapa de Jair Bolsonaro, Mourão é eleito. Tem um início de governo de celebridade política liberal, requisitado por sua palavra mais lúcida e de moderação. Chega a ser alvo da rede de intrigas do “gabinete do ódio” – a guerrilha digital da extrema-direita para destruir reputações de adversários do governo e para disparar fakes – por sua presença assídua na imprensa

O teatro de Mourão não resistiu a uma entrevista jornalística verdadeira. À agência de notícias alemã Deutsche Welle, semana passada, entrevistado pelo jornalista e condutor do programa Conflict Zone (Zona de Conflito), Tim Sebastian, o vice Mourão nega tudo, pinta em cores irreais o que é visível e assume a mentira como instrumento político de defesa, algo que é uma arma estratégica de ataque na boca de Bolsonaro.

Da devastação das queimadas e do desmatamento na Amazônia e no Pantanal à desregulamentação de leis de proteção ambiental para “passar a boiada”; da negação do desmonte do
Estado para a desproteção dos órgãos de fiscalização e proteção aos direitos humanos ao jogo duplo com a indústria de armas; dos ataques de Bolsonaro ao STF e ao Congresso às ameaças de golpe na democracia; das interferências do presidente nas instituições à proteção aos filhos contra as investigações do MPF e do Judiciário. Mourão negou tudo.

Pior que isso ficou: Mourão elogia o coronel Brilhante Ustra como militar e ser humano, nega que ele tenha sido torturador, diz que foi um exemplo de “respeito aos direitos humanos dos subordinados” e considera que são precisos mais 50 anos para a história passar e o  esquecimento sacramentar a impunidade dos crimes da ditadura.

Mourão perdeu a melhor  oportunidade de ficar calado, não falando para o Exterior, mas possibilitou a maior oportunidade do Brasil o conhecer. Agora, Mourão é um vice-presidente fraco. Medroso. O medo de desagradar a Bolsonaro o fez deixar cair a máscara. A entrevista tornou claro que o governo tem a mentira como arma política. É a política pública do governo Bolsonaro: mentir. Além de destruir.

Mourão desrespeitou a memória brasileira ao inocentar e saudar o coronel Ustra. Isso foi mais do que uma questão corporativa. Foi fraqueza de princípios. Ustra foi um criminoso, um torturador condenado. Mourão perdeu também a oportunidade de mostrar que não é um serviçal.

*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Escreve aos domingos.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: poder360.com.br