SALA DE CINEMA – A favor de uma relação mais sensível com o cinema

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 11.10.2020

O crescente desenvolvimento social e econômico gerado pelo progresso tecnológico das revoluções industriais que se seguem desde o Século XIX trouxe novas dinâmicas e comportamentos para o ser humano. Os novos meios de comunicação e transporte combinados com os princípios capitalistas aceleraram e inflaram a relação do ser humano com o mundo. Nunca antes na história da humanidade foi possível ter acesso a tanta informação quanto agora. Incontáveis pontos positivos surgiram disso. Em contrapartida, um ponto negativo que parece ter nascido desse excesso de informação e estímulos foi apontado pela escritora norte-americana Susan Sontag e diz respeito a nossa relação com a arte.

No influente ensaio de 1967 “Contra a interpretação” ela escreve sobre como o relacionamento do homem com a arte na modernidade é predominantemente concebido através de uma percepção de “que a obra de arte é seu conteúdo”, enquanto sua forma não passa de um complemento, um mero meio que tem como função passar uma mensagem (seu ensaio engloba a arte em todas as suas formas, mas aqui tratarei especificamente do cinema). Apesar de ter sido escrito há mais de 50 anos, a profusão de vídeos no Youtube com o famoso “final explicado” de determinado filme/série é um forte indicador desse mesmo comportamento nos dias de hoje, sendo até uma certa validação de uma das causas dadas por Sontag para esse comportamento:

“Pense na simples multiplicação de obras de arte disponíveis para cada um de nós, sobrecombinadas com os gostos e odores e vistas conflitantes do ambiente urbano que bombardeiam nossos sentidos. A nossa é uma cultura baseada no excesso, na superprodução; o resultado é uma firme perda da agudez de nossa experiência sensória. Todas as condições da vida moderna — a plenitude material, sua simples lotação — combinam-se para retardar nossas faculdades sensoriais.”

Acompanhando essa superexposição que estafa a nossa relação sensorial com o mundo, Sontag também atribui esse fato a um outro fator: uma certa disposição intelectual moderna que procura interpretar uma obra como se traduzisse um texto, separando elementos específicos e identificando um significado objetivo para cada um deles, sempre com “um desprezo exagerado pela aparência”. Nessa interpretação (ela cita as “doutrinas modernas” de Marx e Freud como exemplos de teorias utilizadas para interpretar as obras), tudo que é exibido de forma frontal é visto meramente como uma representação de um significado oculto, um subtexto onde está contido o valor verdadeiro de uma obra. Sontag ainda diz que “ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo e então interpretar isso, doma-se a obra de arte”.

É possível entender essa domesticação da obra de arte como uma desmistificação da mesma. Interpretando um filme por meio de métodos que rejeitam sua forma, rejeita-se junto seu valor sensível, já que é através de uma construção formal que o impacto de um filme chega até nós. Ao interpretar ignorando essa dimensão, o filme perde sua alma, torna-se estéril, incompleto, transfigurado, vira uma peça puramente intelectual que não dialoga primordialmente com o sensível do ser humano e, o pior de tudo, fecha a obra em um sentido final, objetivo que talha qualquer outra experiência que não combine com a mensagem supostamente encontrada. Por isso Sontag diz que a “interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte”.

O crítico de cinema Tag Gallagher em seu texto “Narrativa contra o mundo” também vai discutir a questão da demasiada interpretação de um filme. Sobre a mania de tentar “ler” um filme, isto é, encontrar seus símbolos por trás do conteúdo através de teorias preconcebidas, ele diz com um tom de indignação e faz uma comparação esclarecedora:

“Lê-se uma partitura. Ouve-se uma música. Pode-se ler uma partitura ouvindo, mas são duas atividades diferentes. Não existe nenhum meio de ler um filme; nós vemos imagens e ouvimos sons, nós participamos de intensas ações físicas. A leitura é diferente. A ingestão do cinema e da música é estética, física, e possui uma característica fugidia que, em contrapartida, nunca é um problema na leitura. Não é possível ler um filme.”

Um exemplo que é capaz de ilustrar bem a limitação que esse tipo de interpretação possui e causa é pensar em filmes que tenham uma relação sensível com o espectador de uma forma mais evidente. Logo, é quase automático lembrar de filmes como os do diretor David Lynch, que muito mais que uma relação intelectual, propõem uma experiência sensorial como característica principal; ou um filme como A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, que possui uma narrativa totalmente desprendida de qualquer organização mais lógica, partindo para um lado mais sensível e espontâneo do cinema. Enxergo essas obras como quase impossíveis de serem interpretadas pelo seu conteúdo unicamente. Qualquer tentativa de fazer isso geraria uma qualquer coisa que não vai possuir um sentido que conflua com a obra em toda a sua magnitude, e isso não vai ocorrer porque essas obras não possuem conteúdo (inclusive, há pesadas construções simbólicas nos filmes de Lynch), mas sim porque o conteúdo delas é apresentado como uma parte inerente da própria forma cinematográfica.

Esses exemplos são mais evidentes ao demonstrarem a relação imanente que forma e conteúdo possuem no cinema, mas acredito que essa relação está presente em absolutamente todas as obras cinematográficas já feitas que possuam algum valor qualitativo. Em alguns filmes essa relação é mais forte e em outros mais fraco. Ainda em alguns outros essa relação é tão forte que forma e conteúdo são inexoravelmente indissociáveis, tornam-se uma mesma coisa. Esse último grupo possui o que Sontag considera o maior e mais libertador valor na arte, a transparência, qualidade que ela faz questão de atribuir a obra de grandes cineastas da história. “Transparência significa experienciar a luminosidade da coisa nela mesma, das coisas sendo o que elas são. Essa é a grandiosidade, por exemplo, dos filmes de Bresson e Ozu e de A regra do jogo de Renoir.”

Já em relação à crítica (e que pode ser estendido para qualquer interação artística), ela sugere que, em vez desse tipo de interpretação puramente intelectual e fria que ignora os valores estéticos e sensíveis de uma obra, sejam realizadas críticas que dissolvam as “considerações do conteúdo dentro das formas”. Ou seja, submeter o conteúdo e as mensagens que o filme discute à sua construção formal, integrar tudo em uma coisa só. Entender que o conteúdo só é revelado por meio das formas, que são nas formas que o valor artístico reside, são elas que possuem um valor universal e que são capazes de mexer conosco em nossa mais profunda humanidade. Não há interpretação artística saudável fora disso. Muito mais que procurar por conteúdos que justifiquem e deem sentido a uma obra de arte, “precisamos aprender a ver mais, a ouvir mais, a sentir mais.”

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.

Foto destaque: pinterest.com (Filme A Árvore da Vida)