O pão nosso de cada dia

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 12.10.2020

Estava eu colocando uma travessa de pão no forno, na sexta-feira 9, quando recebi a notícia da morte de Luís Carlos Matos, 75 anos, um querido amigo, quase vizinho (em Piedade), líder político que  conheci no dia a dia do trabalho em Jaboatão dos Guararapes. Fiquei devendo uma visita combinada antes da pandemia. O fato é que, nestes tempos, a morte nos impacta além da normalidade, que nada tem de normal.

Lidando com a vida, sempre fui atenta às mudanças que aconteceram, mas nunca com tanta veemência como agora, aos 75 anos. Na verdade, este é um tempo de vida que me conecta, parece, muito mais com a realidade, talvez pelos cinquenta anos que passei trabalhando com políticas públicas.

Confesso que parar e corrigir o rumo  não tem sido fácil por múltiplas questões que dizem respeito ao tempo vivenciado e o que há por vir, mas também tem relação com o que penso, com as leituras que faço e com expectativa que sempre alimentei sobre a possibilidade de termos no Brasil uma vida mais ajustada entre os desejos, as necessidades e o que por nós tem sido realizado.

Construí um entendimento de que durante meus 75 anos a sociedade passaria por mudanças bem significativas e as famílias não morariam em palafitas nas beiras dos rios, nem em favelas em situações insalubres; que a escola teria boa estrutura; que haveria bom atendimento nas unidades de saúde; que não haveria mais violência; que as pessoas estariam mais dispostas ao entendimento; que os homens não exerceriam o seu poder sobre as mulheres; que os idosos seriam respeitados e as crianças teriam os direitos garantidos. Era a esperança.

Já sabíamos que a vida na terra não andava bem, que a desigualdade se ampliava, que as riquezas naturais eram constantemente dizimadas pela ganância, mas a pandemia veio aclarar para nós o quanto ainda poderemos sofrer com as mazelas projetadas pelo ser humano durante sua caminhada na terra.

Fomos todos tomados de surpresa quando nos sentimos obrigados a experimentar longo período de isolamento social, o que significou para a grande maioria muitos sacrifícios, como a perda do trabalho, o que significa não ter onde morar, passar fome com a família, o distanciamento dos parentes, dos amigos, e as dificuldades experimentadas por famílias que convivem em reduzidos espaços de moradia.  No entanto, na minha compreensão, o que mais causou transtorno foi a solidão que muitas pessoas tiveram que exercitar, sobretudo as pessoas mais velhas, as que moravam sozinhas ou as que ficaram impossibilitadas de ir e vir por situações determinadas impostas pelo vírus. O auxílio do Estado amenizou a desdita, para muitos.

Nunca estivemos tão juntos, unidos pela infinidade de formas conectadas pelas redes sociais. No entanto, nunca nos sentimos tão afastados e coube a cada pessoa, individualmente, ocupar o tempo de ação coletiva subtraído pelo vírus por outras formas de ação.

Estou tentando falar sobre essa difícil questão, porque muitas histórias me impactaram neste período. Mesmo ficando com a família, todos, em casa, tratamos de aprender a fazer outras coisas que tivessem serventia para o resto da vida. Cultuar as relações familiares, o que tem sido incomum nesta sociedade, desenvolver algumas habilidades para produzir o que é comum ao consumo familiar no dia a dia da nossa vida, mas que preferimos buscar  nos supermercados, berços do consumismo.

Desocupados do que fazíamos a vida inteira, buscamos o ócio criativo aprendendo algumas coisas, como cuidar dos netos, momento de  grande aprendizagem.

Na pandemia, aprendi a fazer o pão, alimento nosso de cada dia, desde o início da nossa vida. O pão é um alimento universal. Aprendendo a fazer o alimento considerado básico, para alguns, até divino para outros, fui também remoendo lembranças, emoções.

Estudos indicam que o pão surgiu há 12 mil anos, na Mesopotâmia, juntamente com o cultivo do trigo. Os pães eram feitos de farinha misturada com o fruto do carvalho. “Os primeiros pães eram achatados, duros, secos e muito amargos. Para ser ingerido, o pão era lavado várias vezes em água fervente e depois era assado sobre pedras ou embaixo de cinzas”. (Brasil Escola-História do pão).

“O primeiro pão assado em forno de barro foi há 7000 a.C. no Egito, onde, mais tarde, descobriram o fermento. O pão chegou à Europa em 250 a.C., sendo preparado em padarias, mas, com a queda do Império Romano, as padarias fecharam e o pão teve de ser feito em casa. Então, a partir do século XII, a França começou a melhorar a produção desse alimento e, no século XVII, o país se destacou como centro mundial de fabricação de pães”.

Daí o  pão francês, como conhecemos o pão mais consumido do país.

O pão, alimento universal, há séculos tem sua história  confundida com a evolução da humanidade. Há muitas formas de fazer o pão, da mais simples à mais sofisticada.  No entanto, para se fazer um pão tradicional de boa qualidade é preciso ter à mão apenas farinha de trigo, água, sal e fermento. Aí é caprichar no método de trabalhar os ingredientes, diretamente com as mãos e dar atenção ao calor do forno.

Fazer o pão artesanal exige o aperfeiçoamento do seu ócio, o exercício da criatividade e da paciência. É o momento em que você fica ao lado da tigela grande, durante muito tempo, mexendo a farinha, misturando-a à água, sal e fermento com cuidado para que não haja superposição direta entre fermento e sal, e,  observando a mudança ininterrupta e consistente da massa que vai se transformando, o que se repete em vários momentos a cada 30 minutos. Esse processo até o pão sair do forno dura umas 3 a 4 horas.

O movimento das mãos a cada vez que mexe a massa em busca da perfeição apropriada ao melhor sabor, conduz à busca do pensamento.

Esse processo tão simples é que nos conduz à questões remotas, escondidas lá onde registramos as emoções, o que fica das amizades, dos amores, do que gerou felicidade e infelicidade também… coisas que foram levadas pelo tempo real, mas estão registradas na vida. É momento em que surgem ideias que anunciam o que está por vir.

Como Luís Carlos Matos, muitos amigos e pessoas conhecidas e próximas, da nossa geração, estão se ausentando, um número significativo com idade semelhante à nossa, o que aguça a  dificuldade que temos em pensar na finitude da vida.

“A principal lição da pandemia de Covid-19 é que ela nos lembra que a vida é incerta e que se ficarmos esperando, diante da incerteza, chegaremos tarde demais”, reflete Margaret Heffernan.

A vida na pandemia nos obrigou a utilizar o tempo com base em valores diferenciados, sem a rigidez do planejamento repressor, criando formas de uso mais apropriadas à satisfação e ao prazer.

Fazer pão é uma arte, tal qual pintar uma tela, tocar violão, compor uma música, escrever um conto, cultivar uma roseira.

A feitura do pão ao longo de quatro ou cinco horas possibilita o encontro dos meus vários eus, com a minha solidão, com as minhas vontades, com as saudades do que foi e não foi realizado.

Fazer pão, o mais simples que é o mais gostoso, é uma história de prazer.

No entanto, mais prazeroso seria buscar os amigos para um café com o pão e manteiga ao final da tarde.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Foto destaque: Mirtes Cordeiro – Pão produzido por Mirtes Cordeiro.