O abismo infernal do igual como fim da alteridade

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 14.10.2020

Somente pela eliminação do outro e do estranho é que se pode instaurar a sociedade do igual. O abismo infernal do igual (emprestado do livro Sociedade da transparência – Byung-Chul Han, Vozes, 2017) é a máxima expressão de uma sociedade que vai cada vez mais se uniformizando, desfazendo as singularidades e eliminando a alteridade. A existência do diferente é uma ameaça para a ascensão desse processo sistêmico que vai tomando toda a sociedade e impondo um modelo de padronização voraz que tende a eliminar as diversas formas de culturas, coagindo-as a um processo de adaptação, justaposição ou mesmo aniquilação. O reconhecimento do outro para que se realize a experienciação da alteridade pode ser o maior fator de resistência para fazer frente a essa deletéria forma de uniformização da sociedade.

A sociedade em que tudo se resume ao preço e ao consumo denota um lugar em que não há mais resistência às formas impositivas do dinheiro que tende em transformar tudo em mercadoria, em acúmulo da hiperinformação e em comunicação rasa e sem critérios de verdade. Essa é a sociedade da positividade. Um espaço em que a capacidade de reação e questionamento sucumbiu mediante uma força que se caracteriza pelo poder de eliminar singularidades, diferenças, opiniões contrárias ao estabelecido pelo poder. A sociedade da positividade é a expressão que se legitima por otimizar o que já está legitimado pelo poder vigente. É nesse contexto de positividade que a vida perde força e definha porque se equipara, se iguala a outras vidas, através de um processo sistêmico de uniformização dos indivíduos.

A sociedade positiva atua no sentido de fazer com que todos os espaços sejam ocupados. Ela não admite lacunas, desvios, dor, sofrimento, sentimentos negativos. Por isso, ela elimina o que há de fundamental na vida que é a possibilidade dos descaminhos e desencaixes necessários para que a vida não se torne um mero caminhar mecânico e ajustado aos modelos determinados e impostos pela coerção massificante dos modismos e hierarquizações que determinam os comportamentos socialmente aceitáveis e definidos como normais. A sociedade positiva não admite a negatividade. E somente na negatividade é que podemos reconhecer a distância necessária que nos possibilita o encontro com o outro. Por essa razão, a sociedade positiva é a sociedade do igual. Apenas dessa forma é que ela prospera. O processo de positividade é um mecanismo neoliberal que atua para fortalecer a estrutura dominante do capitalismo. Massificação e igualização para fazer valer a ascendência do mercado e do consumo e, por isso, torna-se imprescindível a desconstrução da negatividade.

Não há felicidade fora da dor, por isso, aprender a lidar com as dores é um caminho possível para a felicidade.

Por isso, resgatar a negatividade da sociedade é construir resistências ao imperativo da igualização e ao avanço sistêmico da uniformização neoliberal. É na negatividade que a reciprocidade se concretiza e gera alteridade porque necessita de trocas e responsabilidades mútuas e isso só é possível pela afirmação das diferenças. É também na negatividade que a vida não se enclausura numa felicidade opaca e dormente como se viver feliz é estar livre e protegido das dores e tristezas que chegam em diversos momentos de nossas vidas. Aliás, viver dores, tristezas e lutos e entendê-los como vivências edificantes nas nossas vidas, faz com que aprendamos a lidar com os sofrimentos de maneira sábia e sadia, resistindo com firmeza a esses acontecimentos e evitando adoecimentos do corpo, da alma e do coração. Não há felicidade fora da dor, por isso, aprender a lidar com as dores é um caminho possível para a felicidade.

A sociedade da positividade também faz com que as pessoas queiram viver um tipo de amor asséptico a sofrimentos e dores. Han afirma que nessa sociedade “O amor é domesticado e positivado para a fórmula de consumo e conformidade, no qual todo e qualquer ferimento deve ser evitado” (2017, p. 20). O amor que se evidencia com vigor e plenitude do amar não se isola das dores e percalços que muitas vezes nos fazem emergir em angústias, mágoas e feridas que nos remetem, apesar de tudo isso, ao reconhecimento das nossas humanidades e às necessárias aprendizagens que nos ensinam a lidar com as nossas dores. Essas vivências são possíveis apenas na negatividade. O mais severo da positividade é a sua eficiência em evitar qualquer expressão da negatividade, como se tivéssemos que viver apenas pelo que se expressa como felicidade plena, em que não há o contraditório e nem os espaços lacunares que nos tiram do caminho simétrico. Mas, ao fazer isso, ela gera um processo de adoecimento que se expressa em perturbações de ordem psíquicas, esgotamento, cansaço e depressão. A sociedade da positividade gera ambientes e relações de adoecimentos.

A velocidade que caracteriza as trocas de informação e a massificação nas dinâmicas de comunicação é também um decisivo instrumento de potencialização da positividade. A negatividade reduz a velocidade dos processos de comunicação porque abre espaços para o argumento e para o contraditório, por isso ela dever ser eliminada a todo custo. É nesse sentido que as mídias sociais se alimentam de likes e curtidas para ampliar seu universo de conectividade. No entanto, o mundo digital não é um lugar de alteridade. Na positividade não tem lugar para os dislikes porque, simplesmente eles inviabilizam essa extensão conectiva. Eles desaceleram o ritmo das redes sociais que eliminam distâncias. E sem distância não há alteridade, pois só pela distância é possível o reconhecimento do outro. No igual não há distância e, consequentemente, não há o outro.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação, membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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