Saudades do telefone fixo

Por

Fernando Silva*

Em 17.10.2020

Usei um telefone pela primeira vez aos 15 anos de idade. Espere, vou contextualizar. Morei até essa idade na zona rural de Agrestina, a Capital do Agreste. Lá não existia energia elétrica. Água encanada, nem pensar. Notícias das “terras civilizadas”, transmissão de jogos de futebol, escutar músicas e novela somente através do rádio de pilha. E com hora marcada. Sim, escutava rádio novela junto com mãe, irmã e irmãos. Papai ficava uma fera e dizia que novela era coisa de “muié”. Acho que era uma adaptação do latim (muliere, que origina a palavra mulher). E olhe que o cabra, papai, não sabia nem ler e nem escrever. Assinava o nome com extrema dificuldade. Brincava e dizia que sabia escrever a letra “o” porque a xícara tinha um fundo redondo. Genial! Papai, o meu melhor e maior amigo. De todos os tempos e lugares etc. e tal.

Época de dormir cedo e acordar com o galo cantando, ainda escuro. A alimentação saudável, era produzida na roça. Ainda lembro, como se fosse agora, do cheiro e do gosto do cuscuz de milho bem maduro, feito ao amanhecer do dia por mamãe. Pena que esse tipo de cuscuz só era feito na época junina, quando o milho já caminhava para ficar seco. Não podia passar do ponto. Comia até lamber os beiços. E do queijo e da coalhada caseiros, feitos com leite totalmente natural. Direto do peito da vaca. De beber a água fria, quase gelada, do fundo do pote de barro. O ovo era da galinha da roça. Um dia, mamãe pediu para meu irmão Erivam, o mais novo, pegar ovos no quintal. O primeiro, quando ela partiu, tinha um pintinho em formação. Ele havia tirado debaixo de uma galinha que estava chocando para receber uma ninhada de novos pintos. Um ‘pintincídio’. Ainda bem que os demais ele tirou noutro lugar. Saudades de pegar, torrar e comer tanajura, uma iguaria maravilhosa.

Crianças tentando pegar tanajuras.

Geladeira, sem energia, nem pensar. Só conhecia o caju para chupar e fazer doce (na época, sem a danada da diabetes). Quando fiquei mais velho, passou a servir como tira-gosto para tomar cachaça. Torrar as castanhas do caju era uma atividade perigosa para os pequenos. Porém, as danadas são deliciosas. Lembro da primeira vez que tomei suco de caju, batido no liquidificador, lá na casa da minha tia Lica, irmã da minha mãe. Tia morava no bairro Petrópolis, em Caruaru. Ela bateu uns cajus com água e um pouco de leite (natural, direto do peito da vaca) e gelo. Uma delícia. Ainda faço o dito suco com a receita da tia Lica. Acho esquisito quando tomo o danado sem seguir a receita.

Mas, voltando ao telefone, fixo, diga-se de passagem. Fui apresentado a um aparelho por volta do final de abril de 1978, lá na casa da Madre Porto, na rua Viscondessa do Livramento, no bairro do Derby, Recife. Ela coordenava, se a memória não falha, a Pastoral da Comunicação da Conferência Nacional do Bispo do Brasil (CNBB – Regional Nordeste II). Com Madre Porto moravam as minhas tias, irmãs de papai, Irmã Maria e Irmã Dionísia, que articularam para eu iniciar a minha trajetória profissional (e militância política) na Rua do Giriquiti. Lá funcionava a sede da CNBB etc. e tal e o escambau.

Só sabia conversar olho no olho, sem interferências e intermediações tecnológicas.

O telefone fixo era simples. Madre Porto fez as devidas apresentações e disse como usar. Tipo quando tocar, eu deveria tirar o bicho do gancho, dizer “alô”, “bom dia” ou “boa tarde”. Pronto, virei íntimo do telefone, o fixo, uma novidade e tanto, para mim que estava já na adolescência. Só sabia conversar olho no olho, sem interferências e intermediações tecnológicas.

Comecei a trabalhar na CNBB – Regional Nordeste II onde atualmente funciona o Centro Comercial (Shopping) Boa Vista, no início de maio de 1978. Conheci pessoas maravilhosas; Vanise Araújo, Ceça da Mangueira, Fátima e Tânia, e muito mais. No primeiro dia de trabalho Vanise, que também é minha mãe do coração, explicou minhas atividades (organizar arquivo, servir cafezinho, limpeza, trabalhos na rua e atender telefone). Um multiprofissional!

Matuto, aliás, escutei “ordem cronológica” pela primeira vez aos 15 anos.

Eram várias salas no primeiro andar. Um dia o telefone tocou numa das salas. Fátima pediu para eu atender. Cheguei no bicho, tirei-o do gancho e disse “alô e “bom dia”. Ninguém respondeu. Voltei para minha sala para organizar, em ordem cronológica, boletins das arquidioceses, dioceses, sindicatos e muitos mais. Matuto, aliás, escutei “ordem cronológica” pela primeira vez aos 15 anos. Nunca esqueci. Vanise orientou: organize o boletim de notícias da Arquidiocese de Natal (RN) em ordem cronológica, deixando os números (lembro como se fosse agora) os mais antigos no fundo da pasta A-Z e os recentes na parte de cima. Tarefa cumprida, rápido e segundo a avaliação de Vanise, muito bem executada. Já ia esquecendo, o danado do telefone continuou tocando. Voltei lá na sala e refiz o procedimento ensinado por Madre Porto e ninguém respondeu.

Para encurtar a história, Fátima perguntou como eu estava atendendo a ligação e eu, prontamente, expliquei. Nova descoberta, o telefone fixo tinha quadro ramais (A, B, C e D) e recebi a transferência das chamadas atendidas na central no térreo do belo edifício na Rua do Giriquiti. Era para apertar a letra que piscava e tocava, freneticamente. Matuto sofre quando se depara com a tecnologia.

Agora já posso falar da saudade do telefone fixo. Mas, outra vez, muita hora nessa calma. Ou muita calma nessa hora! É que o telefone celular não deixa ninguém em paz. O bicho vai para tudo o que é lugar. Sala, cozinha, mesa, cama, sofá, trabalho, cinema, teatro, estádio de futebol, bar, casa de parente, amigo, vaquejada, aniversário, casamento, casa do vizinho, restaurante, praia, piscina, lanchonete, padaria, feira livre, supermercado, missa, culto, Natal, Ano Novo, festa de padroeira, São João, Carnaval e  Noite dos Tambores Silenciosos. Inté no banheiro. Viaja de carro, charrete, carro de boi, barco. E inté de avião. O telefone fixo, não. Fica fixo. O celular é um tremendo intrometido e tem múltiplas funcionalidades. Utilidades. Algumas até interessantes. Deixa para lá. Não é o assunto.

Lembro que quando eu estava no Governo do Estado de Pernambuco, Secretário-executivo dos Sistemas Protetivo e Socioeducativo, o celular, era um tormento. Tocava a qualquer momento. Funcionava 24 horas. Estou fazendo um esforço, mas preciso melhorar, para ter o desapego com o danado. Agora, estou definindo horário que olho para as mensagens e, normalmente, deixo no silencioso. As mensagens chegam, freneticamente, a qualquer instante.

Às vezes sou (você também) é inserido em grupos passadores de mensagem etc. e tal (conhecido por ‘zap’ ou WhatsApp) sem autorização. Lembro de Carlinhos, colega de jogar bola lá no Clube Líbano (Recife) que falou algo do tipo: “tem gente que cria grupo só para ser administrador e pensa que é possível colocar isso no seu currículo no lattes”, aquela plataforma do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para alimentar os currículos. No celular tem grupo para todo e qualquer assunto e muitíssimo mais. Se não tiver cuidado, é possível passar 24 horas só respondendo ou comentando assuntos que vão de catota à foguete. Haja criatividade! Pense num bicho sem educação, o passador de mensagem. As mensagens chegam sem um “bom dia”, “boa tarde”. “Boa noite”, nem pensar.

Com a pandemia da Covid–19 (não vou escrever nada sobre a Covid-17, pois ele desistiu desse número) o celular ganhou mais força. O que tem de atividades virtuais! Overdose perde feio. Deixa para lá.

Confesso que estou pensando seriamente em comprar um telefone fixo e abandonar o celular. Quem quiser falar comigo, se for coisa importante, vai ter múltiplas possibilidades: telefonar no fixo (e não quero aquele sem fio, o bicho também anda), pode enviar mensagem pelo correio eletrônico, mandar carta (sim, a famosa correspondência) pelo Correio Postal. E olhe, querem privatizar o danado, como se a privatização fosse a alternativa). Não vamos nos esquecer de Mariana e Brumadinho.

Estou esperando um novo normal (chega logo vacina preventiva!) e vamos ampliar (ou retomar) as possibilidades: tomar cafezinho, comer torta dietética. Beber cerveja, vinho ou como diz Silvino Neto – ex-presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco -, é melhor marcar para “tomar uma cachaça”. Tem assunto que precisa de algo forte. Estou com Silvino.

Reconheço as possibilidades de comunicação que o celular oferece. Porém, o bicho se movimenta e perturba demais. Tem gente que passa mais tempo agarrado com o celular do que lendo um bom livro, uma revista um jornal (impressos, de preferência). Deixo duas dicas: assistam o documentário “O dilema das Redes Sociais” e o “Excêntrico”, do Portas dos Fundos, disponíveis em plataformas digitais. Ambos ajudam na reflexão.

Viva o telefone fixo. Viva o suco de caju da Tia Lica. Viva o cuscuz, de milho quase seco, feito por mamãe. Viva a vida matuta. Viva o planeta Terra e a Mãe Natureza, tão castigados.

*Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades. Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Olinda – PE. Escreve quinzenalmente aos sábados. jfnando.silva@gmail.com