Luz à sombra

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 17.10.2020

Foi Tia Netinha com suas lições debaixo dum pé de algaroba que começou a me salvar da quase fatal estatística dos analfabetos. O perfil para a coluna dos não alfabetizados eu tinha completo. Região geográfica de origem, época, condição socioeconômica dos pais. Nascido na Serra – área rural de Custódia, Sertão do Moxotó e a um grito do Pajeú –, no meio dos anos sessenta, de um casal de agricultores pobres, numa família de treze filhos. Meu pai ludibriara as circunstâncias e durante dois anos subtraíra umas horas à enxada para manusear o lápis numa escola; minha mãe não tivera igual oportunidade.

O tão pouco de letras e números que a vida permitira à Tia Luzinete e a pedagogia somente intuitiva aplicados num céu aberto por escola bastaram para minha alfabetização. Mas isso foi um acidente. A muitos meninos nas minhas circunstâncias nada de semelhante aconteceu, e, repetindo o percurso imposto à minha mãe, se tornaram adultos sem direito à mais sagrada das identidades – escrever o próprio nome.

Na escola do Sítio Mimoso, a seis quilômetros, que eu tinha de vencer de pés, comecei a aprumar os traços e fazer as voltas que os símbolos cobravam.

Sítio Mimoso, Custódia.

Depois, já na cidade de Iguaracy, no Pajeú, comecei a estudar em cadernos de mais folhas e vi livros que não eram só de lição. Concluí o primeiro grau, nível máximo de educação que o município oferecia. A próxima etapa de estudos era um obstáculo a ser transposto na cidade vizinha, Afogados da Ingazeira.

Na sequência, perseguido pela Ditadura Civil-Militar, meu pai teve de se mudar para a Mata Sul de Pernambuco. Ribeirão. Aí, no segundo ano do segundo grau, encontrei o professor que me despertaria o gosto pelos estudos da linguagem – Padre Borges. Até então, anualmente eu só conseguia ultrapassar o sarrafo da média de aprovação roçando e muitas vezes com a larga benevolência dos professores.

Padre Borges me acordou essa faísca. Sua vasta formação encantou-me. Antes do seminário, ele chegara na fronteira de fazer o juramento de Hipócrates. Homem de muitas vivências, havia, em 1922, assistido à Semana de Arte Moderna. Com ele, vi sentido entre a língua e a poesia, a que eu pretensiosamente aspirava em incipientes letras de música desde o começo da adolescência.

O ato de agradecer é sempre também uma ingratidão porque naturalmente omitimos, mesmo que de modo involuntário, alguns nomes que concorreram para nossas vitórias ou realizações. Devo por certo a muitas outras professoras e a muitos outros professores o aluno para sempre que me tornei. Porém, se consegui minimamente descrever a grandeza de Tia Luzinete e Padre Borges, todos os meus mestres e mestras se reconhecerão homenageados nessas duas personalidades.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.

Foto destaque: Eugenio Jerônimo