SALA DE CINEMA – O primeiro filme de horror brasileiro: ‘À Meia Noite Levarei Sua Alma’

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 18.10.2020

“O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência”

Zé do Caixão

Na história do cinema brasileiro são poucos os que possuem tanta importância quanto José Mojica Marins. O cineasta paulistano foi pioneiro ao lançar À Meia Noite Levarei Sua Alma, em 1964, sucesso de bilheteria na época do seu lançamento. Dirigido, escrito e estrelado por ele, o filme marca a estreia do horror na produção cinematográfica do Brasil. Também é nesse filme que um dos personagens mais icônicos de todo o cinema nacional dá as caras pela primeira vez: um coveiro vestindo preto da cabeça aos pés, com direito a capa e cartola, unhas gigantescas e um olhar penetrante que abre o filme com um discurso macabro sobre vida, morte, existência e sangue. Zé do Caixão é a criação maior de Mojica, personagem tão forte que vai se confundir com a própria figura do cineasta e ser o símbolo definitivo do cinema de horror brasileiro.

O fato de À Meia Noite Levarei Sua Alma ter sido o início do horror nacional já garante à obra um valor histórico indiscutível, mas a verdade é que ter sido o primeiro em algo não garante mais nada além disso. Quero dizer com isso que À Meia Noite… e Zé do Caixão serem ícones do cinema deve-se muito menos a seu pioneirismo do que a suas qualidades como obra cinematográfica de forma geral. Deixando ainda mais claro, acredito que mesmo que esse filme não fosse pioneiro no cinema nacional, ainda sim seria um clássico marcante na história do cinema justamente por conta da genialidade artística que Mojica demonstrou ter ao realizá-lo.

O filme conta a história de Zé do Caixão, coveiro de uma pequena cidade do interior, em busca de uma mulher que lhe proporcione a “continuidade do seu sangue”, um filho perfeito. Para isso, ele vai fazer o que bem entender, cometendo os atos mais horrendos e sádicos possíveis com as pessoas que ele acha que estão atrapalhando o seu objetivo de vida.

Logo de início, chama atenção a qualidade técnica que o filme possui se pensarmos as enormes limitações de produção. Gravado em restos de películas que sobravam de filmes de outros cineastas, Mojica não tinha chance de filmar as cenas várias vezes para escolher a melhor posteriormente e praticamente tudo teve que ser gravado de primeira. Mesmo assim, boa parte das cenas são ótimas e convincentes e a composição de diversos planos são elaboradas e até complexas. Um exemplo acontece logo no início do filme. Falo da cena que Zé está comendo carne de carneiro em plena sexta-feira santa com um tom de deboche, enquadrado em primeiro plano, enquanto observa a procissão passando em sua janela, no fundo do plano; o uso da profundidade de campo como poucos fazem. A escolha de fazer essa cena com uma composição mais complexa não é à toa, Mojica torna essa cena marcante pela sua importância na narrativa, já que ela é a primeira cena que vai mostrar de fato o conflito principal do filme.

Zé vai bradar aos céus em tom de provocação que nada é mais forte que sua descrença.

Normalmente os filmes de horror sobrenatural vão apresentar figuras que representam o mal como vampiros, monstros, demônios, fantasmas e outros seres místicos em uma relação dicotômica, uma luta entre a luz e a escuridão. Já Zé do Caixão vai negar tudo isso, ele não é um satanista ou um adorador da morte e da morbidez. Sua relação com o mundo é a do absoluto ceticismo com qualquer coisa que não seja ele ou uma extensão dele, um sentimento de revolta e blasfêmia com todas as religiões assim como um total desprezo com os outros habitantes da cidade, que são vistos por ele como seres inferiores e ignorantes por crerem no sobrenatural e em superstições. Em uma das cenas mais impactantes do filme, um plano sequência de mais de 5 minutos, Zé vai bradar aos céus em tom de provocação que nada é mais forte que sua descrença. Ou seja, diferente do que é comum no gênero, o horror não vem do mistério do sobrenatural, mas sim da total negação dessa dimensão, ou pelo menos do conflito entre essas duas visões de mundo. E é genial como Mojica mesmo assim vai utilizar os elementos comuns do cinema de horror para criar uma atmosfera muito característica do gênero, o filme nunca vai se afastar do horror.

Esse niilismo apresentado pelo personagem não é só um ineditismo na história do cinema de horror como também a justificativa para a abordagem crua que o filme tem com a violência. Através dessa visão amoral e materialista de Zé do Caixão qualquer ato chocante encontra justificativa (ou uma falta de busca por qualquer justificativa), assim as cenas brutais de violência explícita que Mojica consegue fazer com um uso de efeitos práticos surpreendentes e realistas passam a ser mais do que um mero exercício de choque pelo choque, e revelam uma maldade vinda de uma visão de mundo que escolhe como norte um individualismo radical e que enxerga tudo que não a si próprio como destituído de qualquer valor. A própria montagem mais crua e brutal e uma decupagem que se utiliza de planos detalhes a todo momento são elementos que apontam para o materialismo e a ausência de uma transcendência presente na visão do protagonista. Tudo é muito aparente e até mesmo evidente diante da câmera na maior parte do tempo, já que Mojica vai partir para uma abordagem que se aproxima do expressionismo nas cenas mais definidoras do filme, quando finalmente a descrença de Zé é ironicamente abalada pelo sobrenatural.

Mojica, que nos deixou no dia 19 de fevereiro desse ano, merece toda a aclamação possível, porque fazer um filme diferente de tudo já feito por aqui e tão forte e radical como esse, em um Brasil católico de 1964, que escandaliza tanto na forma quanto no conteúdo e, principalmente, com uma qualidade que supera o fator do tempo como poucas obras desse gênero consegue, não é pra qualquer um. Somente gênios são capazes de um feito dessa magnitude.

À Meia Noite Levarei Sua Alma está disponível no serviço de streaming Petra Belas Artes À La Carte. Para assistir clique aqui.

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.

Foto destaque: imdb.com