O direito originário dos povos indígenas
Luiz Eloy Terena
Em 21.10.2020
O julgamento mais importante sobre as terras indígenas está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). No próximo dia 28 de outubro, a Suprema Corte irá analisar o recurso extraordinário n. 1.017365, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que discute a posse da Terra Indígena Ibirama Laklaño, do povo Xokleng, localizada em Santa Catarina.
O Supremo terá que decidir sobre o estatuto jurídico das terras indígenas. Isto porque, estarão em análise duas teses jurídicas: a) a teoria do indigenato e b) a tese do marco temporal.
A teoria do indigenato consiste no fato de que os povos indígenas têm direito aos seus territórios tradicionalmente ocupados, conforme expresso no artigo 231 da Constituição brasileira, não podendo haver nenhuma limitação a este direito, devendo o poder público federal demarcar e proteger todas as terras. Essa tese remonta ao período colonial, onde as leis que foram editadas, respeitaram a posse dos povos originários, como senhores naturais de suas terras.
Já a tese do marco temporal restringe os direitos indígenas e é defendida pelos ruralistas, representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional Brasileiro. Para eles, os povos indígenas só têm direito as terras que estavam ocupando no dia 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Além de limitar o direito das comunidades indígenas, essa tese visa anistiar os crimes cometidos contra os indígenas, especialmente aqueles perpetrados durante o período da ditadura militar. Neste período, muitas terras indígenas, consideradas originalmente como terras públicas, foram invadidas e griladas.
A Constituição Federal completou 32 anos e, mesmo assim, muitas comunidades indígenas aguardam a demarcação de suas terras desde então. O recente Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas (2020), divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), apontou de forma inequívoca que das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência por parte do Estado para a finalização de seu processo demarcatório e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Destas 829, um total de 536 terras (64%) não teve ainda nenhuma providência adotada pelo Estado. Ou seja, o atual presidente da república, além de ter cumprido sua promessa de não demarcar um centímetro de terra indígena, atuou por meio do Ministério da Justiça, na qual devolveu 27 processos de demarcação à Fundação Nacional do Índio (Funai) para que fossem revistos, no primeiro semestre de 2019.
Resumo do caso
No ano de 2009, a Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina – FATMA entrou com ação de reintegração de posse em face da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do grupo indígena Xokleng. A Fundação estadual alegou ser legítima possuidora de uma área de 80.006,00m² (oitenta mil e seis metros quadrados), localizada na Linha Esperança-Bonsucesso, distrito de Itaió (SC), que exercia a posse mansa, pacífica e ininterrupta por mais de sete anos, e, que essa reserva teria sido invadida pelos indígenas.
Na época, a FUNAI ofereceu contestação, refutando a tese inicial e demonstrando que a área da qual a autora se diz proprietária está abrangida pelos efeitos da Portaria nº 1182/2003 do Ministério da Justiça, que declarou de posse permanente dos grupos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani a Terra indígena Ibirama-La Klãnõ, com superfície aproximada de 37.108ha (trinta e sete mil cento e oito hectares), localizada nos municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, José Boiteux e Vitor Meireles, no estado de Santa Catarina.
A ação foi julgada procedente na primeira instância e a decisão mantida no Tribunal Regional Federal (TRF4). Após este percurso, a ação chegou ao Supremo por meio de recurso interposto pela Funai. O relator, ministro Edson Fachin, ao admitir o recurso, apontou que é necessário que se fixe uma tese para resolver sobre a “definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, nos termos do artigo 231 do texto Constitucional”.
O direito indígena na Constituição de 1988
O texto constitucional de 88 foi categórico ao vaticinar em seu artigo 231 “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Não há dúvida, portanto, que o constituinte originário elegeu a tese do indigenato.
Os direitos dos povos indígenas aos seus territórios possuem respaldo constitucional antes mesmo de 1988. Na Carta Constitucional de 1934 é reconhecida a posse dos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam: “Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”.
Seguindo a ordem Constitucional, a Lei n. 6.001/73, também conhecida como Estatuto do Índio, previu em seu art. 65 que o “Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas”. Ou seja, até 1978 todas as terras indígenas deveriam ser demarcadas. Sobreveio a Constituição de 1988 e novamente impôs o mesmo prazo vaticinando no art. 67 da ADCT, que a “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
A teoria do indigenato foi desenvolvida por João Mendes Junior. A subprocuradora-geral da República Déborah Duprat, aponta que essa tese teve início em conferência proferida na antiga Sociedade de Ethnografia e Civilização dos Índios, em 1902, quando o professor João Mendes Junior afirmou: “[…] já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Com quanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na phrase de Aristóteles (Polit., I, n. 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
O Alvará de 1º de abril de 1680, referido no texto, ao cuidar das sesmarias, ressalvou as terras dos índios, considerados “primários e naturais senhores delas”.
Portanto, tem-se nesta norma o reconhecimento expresso do instituto do indigenato, como sendo um direito originário, anterior ao próprio Estado, anterior a qualquer outro direito. Nas palavras do professor José Afonso da Silva “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
Neste sentido, a Constituição de 1988 adotou a teoria do indigenato ao reconhecer o direito originário dos povos indígenas as terras tradicionalmente ocupadas.
*Luiz Henrique Eloy Amado é Terena da aldeia Ipegue (MS) e advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutorando na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França.
Artigo publicado na página oficial da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) na internet.
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