Não verás país nenhum: em ano marcado por queimadas, terras indígenas foram devastadas pelo fogo
Renato Santana e Tiago Miotto*
Em 28.10.2020
Enquanto os militares seguiam com a sua marcha rumo ao Norte, a devastar com ares de conquista centenas de milhares de quilômetros de floresta na Amazônia, conduzindo hordas de homens pauperizados do Sul e Sudeste para abrir garimpos e grilar terras, muitas das quais ocupadas por povos indígenas, Ignácio de Loyola Brandão escreveu e publicou, em 1981, um clássico da literatura nacional – distopia ainda impensável como cenário factível no Brasil de então, mas hoje realidade que se materializa como pesadelo premonitório: Não verás país nenhum.
Não há mais florestas, todas queimadas no decorrer dos anos. Epidemias oportunistas dizimaram parte da humanidade. Não há rios, plantas, árvores. O mormaço e o calor não são mais arrefecidos pelo vento ou chuvas. Aos que sobreviveram, o sol tornou-se mortífero, o lixo se acumula em montanhas pelas cidades, a água tornou-se escassa com o desastre ecológico, a comida é produzida apenas pela indústria e a população vive sob um regime autoritário. Cadáveres são recolhidos das ruas. A história do país foi toda falsificada, deturpada. A violência marca o ritmo da vida social, com milícias espalhadas pela malha urbana controlada. Não há mais país algum. A ficção, quase 40 anos depois, se desloca para uma realidade perturbadora.
“Kofi Annan, secretário-geral da ONU, passou anos repetindo que, hoje, os problemas centrais da humanidade são mudanças climáticas e padrões insustentáveis de produção e consumo, além da capacidade de reposição da biosfera terrestre”
O jornalista Washington Novaes, no prefácio da 25ª edição da obra, em 2007, escreveu: “Kofi Annan, secretário-geral da ONU, passou anos repetindo que, hoje, os problemas centrais da humanidade são mudanças climáticas e padrões insustentáveis de produção e consumo, além da capacidade de reposição da biosfera terrestre”. A Igreja Católica, com o Sínodo da Amazônia e a Encíclica Ladauto Si, do papa Francisco, refazem o alerta. Organizações e ativistas protestam. O governo Bolsonaro, afeito ao ódio e à morte, rechaça o óbvio na defesa de um projeto distópico, apocalíptico.
Em agosto de 2019, os olhares do planeta voltaram-se ao Brasil – e, mais especificamente, à porção brasileira da Amazônia. Não bastasse o aumento expressivo dos alertas de desmatamento neste bioma, indicados pelos dados colhidos por satélites que sobrevoam diariamente as florestas da região, nuvens de fumaça cobriram os céus de cidades do Norte do país e viajaram até o Sudeste, onde fizeram a tarde da maior metrópole do Brasil, São Paulo, virar noite.
Naquele mês, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 30.900 focos de incêndio na Amazônia – um número três vezes maior do que o registrado no mesmo período de 2018. Antes disso, a explosão dos alertas de desmatamento do sistema Deter – também do Inpe, voltado a emitir alertas em tempo real e subsidiar os órgãos de fiscalização ambiental – já havia chamado atenção para a situação preocupante das florestas no país.
“Precisamos mostrar para o presidente que queremos trabalhar e [o] único jeito [é] derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”
Outro evento, ocorrido no dia 10 de agosto, acabou se tornando um símbolo do momento em que as queimadas e os conflitos socioambientais da Amazônia brasileira ganharam projeção global. Naquele sábado, fazendeiros do entorno da rodovia BR-163, no Pará, realizaram diversas queimadas no que ficou depois conhecido como o “Dia do Fogo”. Como consequência, os focos de incêndio nas cidades de Novo Progresso e Altamira cresceram 300% e 743%, respectivamente, de um dia para o outro.
Cinco dias antes, o jornal Folha do Progresso havia publicado uma conversa com um dos produtores que planejavam a ação e sentiam-se, segundo o jornal, “amparadas pelas palavras do presidente Bolsonaro”. “Precisamos mostrar para o presidente que queremos trabalhar e [o] único jeito [é] derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”, explicou a liderança não identificada.
Àquela altura, o Inpe já havia divulgado que os alertas de desmatamento na Amazônia Legal – área de cobertura do Deter, que abrange o bioma amazônico e parte do Cerrado – em junho de 2019 haviam sido 88% maiores do que no mesmo mês de 2018, situação que se agravou ainda mais em julho.
A reação inicial do presidente Jair Bolsonaro, que desde sua campanha eleitoral vinha alardeando a necessidade de “explorar” e “desenvolver” a Amazônia e criticando uma suposta “indústria de multas” ambientais, foi questionar a idoneidade dos dados e exonerar, no início de agosto, o diretor do instituto responsável pelos dados, Ricardo Galvão, sugerindo que ele estivesse “a serviço de alguma ONG”.
Em documento divulgado no dia 26 de agosto, durante a Cúpula do G7, na França, diversas organizações da sociedade civil afirmaram que os discursos públicos do presidente Bolsonaro emitem um “claro sinal de impunidade para a prática de crimes ambientais”, ao passo que o “aparelhamento” e o “desmonte sistemático e deliberado da capacidade operacional” dos órgãos de fiscalização contribuía para a intensificação da crise.
A repercussão negativa foi tamanha que o governo federal, apesar de manter a narrativa de questionamento aos dados e de ataque à reputação do Inpe, foi forçado a se movimentar para evitar um vexame internacional ainda maior.
Assim, em 23 de agosto, emitiu o Decreto 9.985/19, determinando a atuação das Forças Armadas na fiscalização de delitos ambientais na Amazônia Legal. Menos de uma semana depois, o Decreto 9.992/19 proibiu as queimadas em todo o território nacional por 60 dias.
Queimadas em terras indígenas
As terras indígenas foram diretamente afetadas por essa intensa temporada de fogo. Em 2019, os focos de incêndio nesses territórios aumentaram 87% em relação ao registrado no ano anterior.
Em 2019, foram 16.680 queimadas identificadas, pelo Inpe, em terras indígenas de todo o país. Em 2018, o instituto havia registrado 8.942 focos nestas áreas. Os dados, obtidos junto ao Inpe, são do satélite de referência utilizado para o registro e o monitoramento das queimadas no Brasil, o Aqua M-T, de propriedade da Nasa, a agência aeroespacial estadunidense.
Os dados indicam que, no total, 345 terras indígenas foram afetadas pelas queimadas no Brasil em 2019
Segundo o Inpe, este satélite passa diariamente pelo território brasileiro, durante a parte da tarde, e identifica focos de calor ativos, que são indicativos da ocorrência de queimadas. Com resolução espacial de 1 km x 1 km, o sensor utilizado por este instrumento consegue captar frentes de fogo a partir de algumas dezenas de metros quadrados.
Os dados indicam que, no total, 345 terras indígenas foram afetadas pelas queimadas no Brasil em 2019. Assim como nos anos anteriores, a grande maioria delas, 272, são terras indígenas já regularizadas, que deveriam estar plenamente protegidas pela fiscalização do Estado.
No ano de 2019, o Inpe registrou, ao todo, 197.632 focos de incêndio no país – 49% a mais do que em 2018, quando haviam sido registrados 132.872 focos.
Em relação às terras indígenas, a quantidade de focos de incêndio identificados em 2019 foi 19% maior do que a média dos dez anos anteriores e a quarta maior desde 2009. Números maiores foram registrados apenas em 2010 (26.331 focos), 2017 (18.668 focos) e 2012 (17.795 focos).
O pico de queimadas ocorrido em agosto também se refletiu nas terras indígenas, que tiveram 4.753 focos de incêndio naquele mês – 134% a mais do que o registrado no mesmo mês de 2018.
Biomas e estados
O bioma mais afetado pelas queimadas no Brasil durante o primeiro ano do governo Bolsonaro foi a Amazônia, com 89.176 focos de incêndio ao todo – 30% a mais do que havia sido registrado no ano anterior.
Após a impressionante alta no mês de agosto, os focos de incêndio na Amazônia diminuíram a partir de setembro e outubro. A redução pode indicar que a pressão da sociedade civil e da comunidade internacional provavelmente evitaram um cenário ainda mais catastrófico – já que, como aponta nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a estação seca na região se estende de maio a outubro e o pico das queimadas historicamente ocorre em setembro.
“O que alimentou o fogo naquele ano foi a quantidade expressiva de material combustível oriundo da derrubada da floresta, somada à necessidade de limpeza dos terrenos”
Com um período de seca menor do que nos dois anos anteriores, aponta a nota, o aumento das queimadas na Amazônia, cujas florestas são naturalmente úmidas, esteve diretamente ligado ao desmatamento. “O que alimentou o fogo naquele ano foi a quantidade expressiva de material combustível oriundo da derrubada da floresta, somada à necessidade de limpeza dos terrenos”, destaca o Ipam.
Em 2019, a Amazônia concentrou 38% das queimadas em terras indígenas, com 6.293 focos de incêndio. A quantidade foi 67% maior do que o registrado em 2018 e 17% maior do que a média dos dez anos anteriores.
Apesar disso, o bioma que registrou o maior número de queimadas em terras indígenas no ano de 2019, como ocorre historicamente, foi o Cerrado. Os 9.543 focos de incêndio em 2019 foram quase o dobro do registrado em 2018 e, assim como na Amazônia, estiveram 17% acima da média registrada a partir de 2009.
O bioma que teve o maior aumento de focos de incêndio em terras indígenas em 2019 foi o Pantanal. Com 499 registros, as terras indígenas neste bioma queimaram quase sete vezes mais do que no ano anterior. O número também é 3,7 vezes maior do que a média registrada entre 2009 e 2018.
O Mato Grosso do Sul, estado que abrange a maior parte do Pantanal, registrou em 2019 um aumento de 452% nos focos de incêndio em terras indígenas. A Terra Indígena (TI) mais afetada no estado – e a segunda mais atingida por queimadas no país – foi a Kadiwéu, que fica localizada na transição entre o Pantanal e Cerrado e registrou 1.268 focos de incêndio. Há alguns anos, os Kadiwéu vêm denunciando a apropriação privada do território por fazendeiros e cobrando do Estado a desintrusão da área, que é regularizada.
Terras de isolados
Chama atenção a quantidade de queimadas identificadas em terras indígenas com portarias de restrição de uso e ingresso devido à presença de povos indígenas isolados. Quatro das seis TIs nessa categoria – todas elas localizadas na Amazônia – foram afetadas por queimadas em 2019.
Ao longo do ano, o Inpe registrou nas TIs Jacareúba/Katauixi (AM), Piripkura (MT), Pirititi (RR) e Ituna/Itatá (PA), em conjunto, 207 focos de incêndio. Essa quantidade de queimadas em terras sob restrição representou um aumento de 52% em relação ao registrado em 2018 e é mais de quatro vezes maior do que a média dos dez anos anteriores.
“As declarações de Bolsonaro culpando os povos indígenas pelos incêndios que ocorrem na Amazônia são mentirosas e irresponsáveis. Em relação aos povos indígenas isolados, essas declarações são ainda mais absurdas, porque esses povos têm exatamente na floresta o seu refúgio”
“As declarações de Bolsonaro culpando os povos indígenas pelos incêndios que ocorrem na Amazônia são mentirosas e irresponsáveis. Em relação aos povos indígenas isolados, essas declarações são ainda mais absurdas, porque esses povos têm exatamente na floresta o seu refúgio”, avalia Guenter Francisco Loebens, missionário do Regional Norte I e integrante da Equipe de Apoio aos Povos Livres do Cimi.
“O presidente sinaliza não só com a condescendência em relação aos crimes ambientais, mas também com a impunidade dos criminosos que avançam sobre as florestas na Amazônia. Esses grupos se sentem respaldados, inclusive, para destruir e avançar sobre os territórios de indígenas em situação de isolamento”, analisa Loebens.
Segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), o desmatamento nas terras indígenas da região amazônica, entre agosto de 2018 e julho de 2019, foi o maior registrado em 11 anos, com 42,6 mil hectares derrubados. E a terra mais atingida neste período foi a TI Ituna/Itatá, com 12 mil hectares devastados. Ocupada por indígenas isolados e interditada por uma portaria da Funai, 169 focos de incêndio foram registrados sobre ela em 2019.
Os alertas do sistema Deter também apontam para a correlação entre desmatamento e queimadas. Das 267 terras indígenas da Amazônia Legal com focos de incêndio registrados em 2019, 111 tiveram alertas do Deter indicando a ocorrência de desmatamento ou mineração; outras 14 tiveram alertas de outros tipos (cicatrizes de queimada, degradação ou corte de árvores).
Cifra invisível
Apesar de altos, os focos de incêndio registrados em TIs pelo Inpe não conseguem abranger todas as aldeias e territórios indígenas do país. Isso porque grande parte desses territórios ainda não foram demarcados e não têm, por isso, uma delimitação que lhes garanta um lugar na cartografia das instituições do Estado brasileiro. Na prática, para os instrumentos oficiais de monitoramento, são territórios invisíveis, mesmo que estejam total ou parcialmente na posse de comunidades indígenas.
Segundo os dados do Cimi, há atualmente 528 terras indígenas nessa situação – reivindicadas como áreas de ocupação tradicional pelos povos, mas sem providências da Funai para proceder com sua identificação e delimitação. Muitas dessas terras indígenas foram afetadas pelas queimadas de 2019, embora não seja possível quantificar essas ocorrências.
É o caso, por exemplo, da TI Valparaíso, do povo Apurinã, localizada no município de Boca do Acre, no sul do Amazonas. Segundo informações do Regional Amazônia Ocidental do Cimi, os indígenas lutam há 29 anos pela demarcação deste território. Em agosto, fazendeiros que ocupam parte dele queimaram 600 dos cerca de 27 mil hectares reivindicados pelo povo Apurinã. A queimada destruiu um castanhal utilizado pelos indígenas como fonte de subsistência.
“Os Huni Kuī fizeram neste território um centro cultural e de espiritualidade, onde também acolhem, nos finais de semana, os jovens e famílias do povo que moram na cidade para estudar. Frequentam este espaço como forma de manterem sua cultura”
Situação semelhante foi vivenciada pela comunidade Huni Kuī do Centro Huwá Karu Yuxibu, uma área de 200 hectares na zona rural de Rio Branco, no Acre. Ainda segundo o regional, cerca de 100 hectares da área, adquirida pelos próprios indígenas, foram destruídos por um incêndio criminoso.
“Os Huni Kuī fizeram neste território um centro cultural e de espiritualidade, onde também acolhem, nos finais de semana, os jovens e famílias do povo que moram na cidade para estudar. Frequentam este espaço como forma de manterem sua cultura”, explica Ivanilda Torres dos Santos, coordenadora do Regional Amazônia Ocidental do Cimi.
O incêndio atingiu justamente as plantas que eram usadas pelos indígenas para fazer o chá de seus rituais de ayahuaska. Até agosto de 2020, a investigação policial sobre o caso não tinha chegado a nenhum resultado.
Oficialmente, estes territórios ocupados pelos povos Apurinã e Huni Kuī não existem. Essas áreas destruídas por queimadas, consequentemente, não entraram na soma dos 144 focos de incêndio que, segundo o Inpe, atingiram as terras indígenas do Acre em 2019.
Indígenas combateram queimadas
Enquanto os satélites registravam os dados da situação alarmante, diversos povos indígenas mobilizavam-se para combater as queimadas que assolavam seus territórios. Segundo informações do Centro Integrado Multiagência de Coordenação Operacional Nacional (Ciman), pelo menos 39 brigadas indígenas vinculadas ao Programa PrevFogo, do Ibama, atuaram no combate às queimadas em 31 terras indígenas durante a temporada de incêndios de 2019.
Mesmo nas terras indígenas que não contaram com o apoio dos órgãos do Estado, os povos mobilizaram-se por conta própria para tentar conter as queimadas.
“Combatemos 22 quilômetros de fogo, que chegou a dois quilômetros da aldeia. Uma situação muito triste, destruição e animais mortos”
Foi o caso da TI Krahô-Kanela, localizada no município de Lagoa da Confusão (TO). Lideranças relataram que cerca de 95% dos seus 7.612 hectares foram devastados pelo fogo, que se espalhou pelo território de forma rápida e destrutiva. Os dados corroboram o relato das lideranças: 40 dos 41 focos de incêndio registrados pelo satélite Aqua sobre a TI ocorreram entre os dias 27 de agosto e 18 de setembro.
“Combatemos 22 quilômetros de fogo, que chegou a dois quilômetros da aldeia. Uma situação muito triste, destruição e animais mortos”, disse Wagner Krahô Kanela em setembro. Brigadas Javaé, Karajá e Xerente se dirigiram a esta erra indígena para ajudar no combate às chamas.
A TI Krahô-Kanela fica próxima às TIs Inawebohona e Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna, que registraram em 2019, respectivamente, 778 e 176 focos de incêndio – a maioria no mesmo período que o território Krahô Kanela, em agosto e setembro. Ambas, também no Tocantins, são sobrepostas pelo Parque Nacional do Araguaia, unidade de conservação gerida pelo ICMBio.
Os incêndios no interior destas terras afetaram a Mata do Mamão, local de perambulação de indígenas em situação de isolamento voluntário. “Aqui temos as brigadas treinadas, mas esses parentes não têm nada”, preocupava-se, à época, a liderança Krahô Kanela.
A Mata do Mamão estende-se até a TI Parque do Araguaia, também no Tocantins, território que registrou o maior número de queimadas no ano de 2019: foram 1.530 focos de incêndio.
“Todos os dias os Myky vão para lá (lugares do fogo) controlar, mas não dão conta. Esse foco fica a uns 17 quilômetros da aldeia, entre duas fazendas. O fogo vem e vai”
No Mato Grosso, na região dos municípios de Brasnorte e Juara, os esforços de combate às queimadas também passaram a fazer parte do cotidiano do povo Myky, em cujo território foram identificados 18 focos de incêndio em 2019.
“Todos os dias os Myky vão para lá (lugares do fogo) controlar, mas não dão conta. Esse foco fica a uns 17 quilômetros da aldeia, entre duas fazendas. O fogo vem e vai”, relatou, em setembro, a missionária Elizabeth Amarante Rondon, do Cimi Regional Mato Grosso. Naquele mês, a pedido da Funai, o Ibama enviou brigadistas e o incêndio finalmente foi controlado.
Setembro também foi um mês especialmente preocupante para os Apiãwa (Tapirapé) da TI Urubu Branco, também localizada em Mato Grosso, na transição entre os biomas Cerrado e Amazônia. A TI dos Tapirapé foi a décima mais atingida por queimadas em 2019, com 416 focos de calor identificados pelo satélite Aqua – 365 dos quais naquele mês.
Como consequência, os alertas de cicatriz de queimadas do sistema Deter cobriram cerca de 17% dos 167,5 mil hectares da TI Urubu Branco em 2019 – uma área equivalente à que foi desmatada na TI Urubu Branco nos 30 anos anteriores, segundo informações de outro sistema do Inpe, o Prodes, que reúne dados de desmatamento acumulado ano a ano.
“A queimada atingiu praticamente toda a TI. Os Apyãwa dizem que apelaram à Funai, Ibama e outros órgãos, mas não obtiveram sequer um mínimo de resposta efetiva”, relatou Luiz Gouvêa de Paula, do Cimi Regional Mato Grosso. “Eles tentaram várias vezes apagar eles mesmos, mas sem equipamentos pouco puderam fazer. O pior é que isso vem acontecendo há anos e a mata está morrendo”.
“Esse ano foram vários focos de fogo e não conseguimos acompanhar todos, foi muito ruim para nós em relação aos incêndios”, corroborou Elber Kamoriwa’i Tapirapé, cacique-geral do povo Tapirapé. “O futuro das gerações do povo Apyãwa está em risco”.
A destruição causada pelas queimadas no território Tapirapé esteve diretamente ligada, conforme os indígenas relatam, com outras violações aos seus direitos territoriais, como o constante roubo de madeira e a presença de fazendeiros, cuja retirada do território vem sendo protelada há anos por recursos judiciais.
“Os pecuaristas continuam queimando os pastos e, com isso, queimando a maior parte do território. O fogo vem principalmente das fazendas que estão na região norte [da TI] e se espalha. Fica difícil a gente controlar”, avalia o cacique-geral.
A situação fez com que os Tapirapé fossem a Brasília, em outubro, junto a lideranças de outros povos da região do Araguaia, para cobrar do Ibama a fiscalização de suas terras tradicionais e a criação de equipes indígenas do Prevfogo também nestes territórios, com treinamento e condições para combater incêndios.
Crise deliberada
Para o sociólogo e integrante da coordenação do Movimento Nacional de Fé e Política, Pedro Ribeiro de Oliveira, a questão climática afeta a Amazônia e os demais biomas, mas a crise das queimadas é resultado, sobretudo, de uma política deliberada.
“O capitalismo está em crise, se transformando em capital financeiro para valorizar o capital, se apropriando dos bens comuns para transformá-los em mercadoria. E a Amazônia eos demais biomas são uma mina de bens comuns. Então, a ambição do capital hoje é transformar esses bens, água, biodiversidade, madeira, terras, em bens que se compra e vende no mercado”, explica.
“Ninguém permitiria um desmatamento legal da Amazônia. A pressão contrária seria enorme. O capitalismo recorre à doutrina do choque: vamos fazer um desastre e todo mundo vai ter que aceitar as soluções. Vamos trazer os capitais para dar um jeito nisso. É uma crueldade muito grande com os povos indígenas, com as populações que vivem da floresta e com a própria natureza”, avalia o sociólogo.
*Renato Santana e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
Artigo publicado originalmente no Relatório de violência contra os Povos Indígenas, retrata avanço de queimadas sobre territórios em 2019
Foto destaque: Fogo devastou a TI Valparaíso (AC), do povo Apurinã | Foto: Denisa Starbova
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