Rastros sangrentos e cicatrizes invisíveis em Burquina Faso
José Ambrósio dos Santos*
Em 28.10.2020
Você já experimentou a sensação de ver o seu salário atrasar no final do mês, ou de um inquilino solicitar um adiamento no pagamento da mensalidade do seu único imóvel alugado, de modo a comprometer o seu orçamento mensal? Desagradável, não é mesmo? Pois imagine a pessoa ter que largar o pouco que tem, abandonar a casa, familiares e buscar refúgio em outro lugar distante e até fora do país. Esse é um drama vivido por milhões de pessoas em todo o mundo, vítimas principalmente das atrocidades de violentas perseguições políticas. Uma violência que quando não mata deixa muitas cicatrizes, inclusive invisíveis.
A crise humanitária que mais cresce no mundo, na avaliação da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, está se desenvolvendo em Burkina Faso, país da África Ocidental. Segundo MSF, nos últimos dois anos, a escalada da violência por grupos armados no norte e no leste do país obrigou mais de um milhão de pessoas a fugir de suas casas. Quase metade delas foi deslocada desde o início deste ano, após um aumento nos ataques. A maioria vive em condições precárias, com acesso limitado à água, comida, abrigo e cuidados de saúde adequados e com medo constante de novos ataques. Durante a atual estação chuvosa, as pessoas deslocadas e as comunidades anfitriãs enfrentam desafios adicionais, incluindo taxas crescentes de malária e desnutrição.
O.K (nome alterado por motivos de segurança), de 45 anos de idade, conta à equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) que estava em casa no vilarejo de Fondioaga, no leste de Burkina Faso, numa segunda-feira de julho, quando homens armados chegaram e mataram um membro da comunidade. Na manhã seguinte eles voltaram, assassinando um segundo homem, antes de continuar os atos de violência em um vilarejo vizinho. “Foi quando percebemos que, se ficássemos, eles matariam todo mundo. Por isso, fugimos com nossas esposas, filhos e pais”, diz O.K. Ele fugiu com a família para a cidade de Matiaocoli, a 25 km de distância. “Deixamos nossos pertences e animais para trás e não sabemos se eles ainda estarão lá quando voltarmos para casa. Aqui, não temos absolutamente nada. Estamos cansados de tantas preocupações”.
Outro problema de saúde é menos visível, mas igualmente devastador. “As pessoas que testemunham um ataque violento costumam ficar traumatizadas. Primeiro, elas se perguntam: ‘Por que isso está acontecendo comigo?’ Então, muitas vezes, elas se sentem culpadas porque sobreviveram ou não foram capazes de salvar outras pessoas. Seu sofrimento é ainda pior quando são forçadas a fugir de suas casas”, explica o psicólogo Issaka Dahila, da equipe de MSF.
Diante da violência e do deslocamento, as pessoas reagem e se adaptam de maneiras diferentes. Alguns sobrevivem por meio do apoio da família ou da comunidade. Outros tentam reprimir e conter suas emoções.
“Vemos pessoas que vêm até nós com queixas persistentes dias, semanas ou até meses depois dos fatos, com sintomas de tristeza, medo, negação ou raiva”, diz Dahila. “Às vezes os ouvimos dizer: ‘Não tenho valor! Minha vida não tem sentido’. Algumas pessoas têm dificuldade em ver um futuro para si mesmas. Alguns até querem acabar com suas vidas. Neste verão, uma jovem mãe de um menino de um ano cometeu suicídio depois que homens atacaram seu vilarejo e mataram seu marido.”
A decisão de uma pessoa de acabar com sua vida pode ser o resultado de um sofrimento psicológico significativo que ela não pode mais suportar. Do ponto de vista deles, a única maneira de parar esse sofrimento, essa dor perpétua, é tentar o suicídio. Embora esses casos não ocorram com frequência, eles ilustram o trauma que as pessoas afetadas pela violência estão experimentando. O número de pacientes com problemas de saúde mental aumenta durante os conflitos: em média, 5% das pessoas desenvolvem transtornos mentais graves e 17%, transtornos leves e moderados.
Para ajudar a aliviar o sofrimento das comunidades deslocadas e anfitriãs, MSF iniciou atividades de saúde mental na região leste de Burkina Faso no final de 2019.
De julho a setembro, 128 pessoas compareceram a consultas individuais e 4.391 foram a sessões de saúde mental em grupo. Enquanto alguns procuram diretamente às nossas clínicas em busca de ajuda, muitos são encaminhados por outros serviços médicos.
“Quando nos encontramos pela primeira vez com os pacientes, eles descrevem sintomas físicos, como problemas de sono, dores de cabeça, batimentos cardíacos mais fortes ou sensação de susto sem motivo aparente. Geralmente, as pessoas são melhores em identificar problemas físicos do que psicológicos e emocionais”, avalia Dahila.
Ele diz que as crianças têm sua própria maneira de reagir à violência e ao deslocamento que presenciaram e sofreram. Algumas mostram sinais como urinar na cama e ter pesadelos, mas outros podem entrar em negação. Também podem usar jogos para reproduzir o evento traumático.
A equipe de saúde mental de MSF em Burkina Faso oferece uma série de serviços para aliviar o sofrimento psicológico de pessoas afetadas por violência, conflito ou deslocamento. Isso inclui sessões de aconselhamento individual, familiar e em grupo, onde os especialistas em saúde mental enfocam os mecanismos de enfrentamento e construção da resiliência. Questões e doenças específicas, como violência sexual, HIV/AIDS e desnutrição, também são abordadas. Para pessoas que passaram recentemente por um evento traumático, os especialistas em saúde mental de MSF oferecem “primeiros socorros psicológicos”, uma técnica projetada para reduzir o aparecimento de possíveis traumas.
MSF está realizando sessões de conscientização sobre a importância da saúde mental, mas nem todos que precisam procuram ajuda. Um dos problemas é a dificuldade que as pessoas enfrentam para acessar serviços de saúde mental em áreas remotas e inseguras. Outro desafio é o estigma que ainda está frequentemente associado a problemas de saúde mental em Burkina Faso.
Fonte: Médicos Sem Fronteiras.
*José Ambrósio dos Santos é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras.
É uma situação desesperadora mesmo para aquele povo já tão explorado e sofrido. Um horror.
Pois é, Carlos Sinésio. É dolorido até fechar os olhos e buscar visualizar situações descritas e que sabemos são vividas diariamente por muitas pessoas no mundo.