Chile: “No es por 30 pesos, es por 30 años”

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 02.11.2020

Recentemente o Chile apresentou ao mundo expressiva vitória da vontade popular, ao definir o caminho para em curto prazo aniquilar o que resta ainda do arcabouço legal da Constituição Chilena aprovada ainda pelo governo ditatorial do Pinochet.

Desde outubro de 2019 a população chilena tem manifestado nas ruas o seu descontentamento com as condições de vida da maioria da população, demonstrando pressa e muita convicção. O estopim veio com o aumento da passagem do metrô, o transporte usado massivamente pelos trabalhadores, considerado o segundo mais moderno da América Latina.

No entanto, o aumento das passagens foi apenas a gota d’água num copo que já não comporta a água e transborda…

As concentrações populares logo expuseram suas causas reais: o alto custo de vida – até 2019 Santiago do Chile era a segunda cidade mais cara da América Latina, as pensões baixas, os altos preços dos medicamentos e tratamentos de saúde, uma rejeição geral de toda sociedade à classe política e o descrédito institucional acumulado ao longo dos anos, incluindo a própria Constituição do país.

Diante da pressão popular, Piñera, o presidente, respondeu com uma promessa de fazer uma ampla reforma política, diminuindo os cargos da administração pública e modificando a política econômica do país, que ainda segue as diretrizes elaboradas pela ditadura de Augusto Pinochet.

A população reagiu e exigiu uma nova Constituição.

Visto por nós, brasileiros, como um país que abraçou a modernidade ainda no regime ditatorial, o país pode se orgulhar por ter alguns dos indicadores de saúde melhores do continente. A expectativa de vida (77,7 anos) e a taxa de mortalidade infantil (7,9/mil nascidos vivos) ocupam o primeiro lugar entre os países da América do Sul. Sua economia é tida como sólida pelos órgãos que definem as diretrizes econômicas para os países em desenvolvimento – Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e outros, que rezam pela cartilha dos interesses do grande capital internacional.

O Chile é um país localizado na costa oeste da América do Sul que limita fronteira a leste com a Argentina, a nordeste com a Bolívia e ao extremo norte,com o Peru. Seu território com desenho longilíneo e elegante, se encontra entre a cordilheira dos Andes e o oceano Pacífico. A extensão territorial no sentido norte-sul do país é de 4,3 mil km. Em contrapartida, de leste a oeste possui somente 200 km.

Deserto de Atacama

Ao longo de toda extensão do país é possível identificar uma imensa variedade de climas e cobertura vegetal, além do deserto de Atacama com suas montanhas coloridas, o que torna a paisagem belíssima para quem faz a viagem pela Rodovia Pan-americana, de Pucon, uma região turística que está ao sul, à Iquique, ao norte, capital da região de Tarapacá.

A viagem é muito linda, e nada se compara à magia de viajar entre as montanhas do deserto, coloridas pelos reflexos do sol, e o azul das águas do oceano pacífico. Em paz, foi como me senti na primeira viagem que fiz para visitar amigos chilenos em Antofagasta e Iquique, em 1979. Parecia que a beleza do deserto do Atacama diminuía o impacto da ditadura pinochetista.

Confesso que senti medo quando, ao chegar no aeroporto de Santiago, o funcionário da alfandega lançou mão do livro preto para procurar o meu nome entre os que lá estavam assentados.

O subsolo chileno é rico em recursos minerais, especialmente em cobre, tendo em vista que cerca de 38% das jazidas mundiais encontram-se no país. Por isso o Chile ocupa o primeiro lugar na produção desse minério em escala mundial.

Para compreender o momento presente é sempre necessário rever o passado.

Em 1970, quando assumiu a presidência do Chile, Salvador Allende tinha um plano de desenvolvimento para o país que visava reduzir as diferenças sociais. Para isso, deu continuidade à reforma agrária iniciada por seu antecessor Eduardo Montalva, estatizou bancos e algumas indústrias, como a de mineração, têxtil e alimentícia.

Presidente Salvador Allende

De fato, o país cresceu. De 1970 para 1971 houve um aumento de 12% na produção industrial (o maior em 20 anos), novos empregos foram gerados e os salários aumentaram. Porém, o rápido crescimento ocasionou graves desequilíbrios nas finanças chilenas: o país se endividou ao comprar empresas privadas e os gastos públicos também aumentaram. Salários dos trabalhadores cresceram e a população passou a ter maior poder aquisitivo. Com a elevação do consumo e o desequilíbrio das contas públicas a inflação se instalou com altos indicadores. Estudos indicam que a inflação, que foi de 22% em 1971 chegou a 162% um ano depois.

O projeto socializante iniciado por Allende desagradou as elites econômicas chilenas e, sobretudo, as grandes corporações e grupos estrangeiros, que viram seus interesses serem contrariados pelo novo presidente chileno. A grande pressão desses grupos ligados à direita internacional proporcionou a tomada do poder pelos militares em 1973, sob o comando do General Augusto Pinochet.

O controle de preços pelo governo e a redução do fornecimento de mercadorias, aguçada pela greve dos caminhoneiros e pela sabotagem ao governo por grupos da direita, levaram ao descontentamento da população.

Um dos países diretamente responsáveis pela sabotagem do governo Allende foram os Estados Unidos, temerosos pela nomeação de um presidente declaradamente marxista na América do Sul. A guerra fria no pós-guerra (Segunda Guerra Mundial) produziu ditaduras em série articuladas pelo governo de Washington em vários países no território latino–americano.

Os Estados Unidos impuseram sanções econômicas ao Chile e forçaram a queda do preço do cobre, – principal produto de exportação chileno – no mercado internacional. Além disso, grupos de oposição passaram a receber apoio da Agência Central de Inteligência (CIA), órgão do governo norte-americano. (Brasil Escola)

Durante a ditadura de Pinochet estima-se que mais de três mil pessoas foram mortas pela repressão do governo e outras 40 mil foram torturadas.

Segundo Cabaluz, professor e pesquisador chileno, “os professores e trabalhadores da educação são o grupo de profissionais com a maior quantidade de pessoas executadas e desaparecidas durante a ditadura civil-militar. A grande crise de 2019 se dá porque o modelo herdado da ditadura, que se instaurou a sangue, fogo, repressão, e que se consignou na Constituição política de 1980, é um modelo que está implodindo o país”.

As mudanças implantadas pela ditadura obedeceram a orientação da economia liberal defendida pela chamada “Escola de Chicago” e seus economistas, os “Chicagos Boys”, que propunham abertura da economia, amplo programa de privatizações e regime previdenciário de capitalização.

O país é conhecido por ser o primeiro onde o modelo neoliberal foi implementado e onde ele melhor se consolidou no decorrer das décadas. Isso quer dizer que as obrigações do Estado foram reduzidas. (Henrique  Martin)

Convém observar que fez parte deste grupo o atual Ministro da Economia de Bolsonaro, que ora no Brasil tenta implantar algumas propostas que resultaram em baixa qualidade de vida para a grande maioria da população chilena.

As principais medidas implantadas resultaram que a abertura da economia ao comércio exterior ocorreu de forma que ocasionou grande prejuízo à indústria chilena. O regime previdenciário de capitalização, sob responsabilidade apenas do trabalhador, através da “poupança” individual realizada durante os anos de trabalho se revelou totalmente  insuficiente  para sua manutenção após a aposentadoria e a privatização da educação contribuiu decisivamente para a situação de desigualdade em que o país se encontra. Nas universidades, 84% dos alunos pertencem às classes mais altas, contra somente 11% de alunos que provêm de famílias mais pobres.

Os mais pobres são massivamente direcionados a formações técnicas, segundo Oscar Vara, professor de Economia na Universidad Autónoma de Madrid.

Embora o Chile apresente há alguns anos o melhor desempenho da América do Sul no PISA (Programa Internacional de Avaliação)  a expansão da educação foi feita não pela garantia do direito social, mas através do endividamento das famílias e do enriquecimento das empresas, sobretudo no ensino superior, com poucos subsídios do estado.

O Chile é tido como o país mais próspero da América do Sul. Exportações em alta, crescimento acima da média dos demais países da América Latina, na casa do 4% ao ano. No entanto o desempenho da economia neoliberal não foi suficiente para impedir a profunda desigualdade social.

Segundo a última edição do relatório Panorama Social da América Latina, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a parcela de 1% mais rica da população chilena manteve 26,5% da riqueza do país em 2017, enquanto 50% das famílias de baixa renda representavam apenas 2,1% da riqueza líquida.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística do Chile, metade dos trabalhadores do país recebe um salário igual ou inferior a 400 mil pesos (R$ 2.280) ao mês. Situação bem diferente do Brasil, que, como comparação, 60% dos trabalhadores (ou 54 milhões de pessoas) tiveram um rendimento médio mensal de apenas R$ 928 no ano passado, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE.

Segundo alguns estudiosos, o sentimento entre os cidadãos chilenos é de que não houve resposta dos governos a problemas que se arrastam há décadas, mesmo considerando que já houve outros governos após a ditadura que fizeram algumas reformas, mas sem suficientes avanços.

“Se os primeiros governos, tanto de Bachelet quanto de Piñera eram símbolos de mudança, as segundas gestões de ambos esgotaram o estoque de esperanças. Eles pegaram a retroescavadeira e enterraram os melhores tempos. Eles estavam surdos à falta de um projeto nacional, um caminho para o desenvolvimento, uma meta compartilhada que dê sentido às dificuldades cotidianas”, escreveu o jornalista Daniel Matamala.

Os recentes protestos foram liderados principalmente por estudantes que sofrem com o processo de privatização da educação e agora incorporam várias reivindicações no campo dos direitos, além da previdência digna, educação gratuita, segurança pública, aumento da passagem do metrô e outros.

Violências aconteceram, mas um plebiscito foi realizado e a população conquistou o direito de ser ouvida. Venceu a proposta que elegerá um congresso constituinte com as mulheres participando em condições de igualdade plena, ou seja, 50% das cadeiras serão ocupadas por mulheres eleitas em igualdade com os homens. Após votado o documento com as propostas escolhidas pelo congresso constituinte, a população será chamada novamente a se manifestar com o seu referendo.

Bravo! Viva o Chile, Mierda… “No es por 30 pesos, es por 30 años.”

Aos meus amigos chilenos.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto: – Medidas impopulares do presidente Piñera desencadearam protestos principalmente na capital, Santiago/Deserto do Atacama.