Felicidade: (des) Encontros com a vida
Vera Lúcia Braga de Moura*
Em 05.11.2020
Tudo depende, na maioria das vezes, da forma como resolvemos enxergar a vida. Um domingo desses eu estava no Parque da Jaqueira, em Recife, na aula de yoga e a professora solicitou que fizéssemos o exercício de olhar as árvores de cabeça para baixo. De início, causou-me um certo estranhamento, porém, esse ato fez toda a diferença. O lugar era o mesmo, as árvores estavam no mesmo local, porém a forma de enxergá-las mudou. Achava engraçado, sorria com a nova paisagem. A perspectiva foi alterada e eu pensava; a árvore está com outro desenho, nem melhor e nem pior, está diferente, completamente diferente. Outra paisagem se apresentava para mim. Esse exercício me fez pensar como somos rígidos, engessados e limitados na nossa forma de enxergar as coisas. Somos muito pragmáticos, como se estivéssemos congelados naquela forma de olhar as nossas relações e o mundo. Olhar as árvores de cabeça para baixo me possibilitou ampliar a visão e entender que tudo pode ser visto de outra forma, de maneiras diversas. É só nos disponibilizarmos a mudar a direção, ampliar o olhar e podemos ter surpresas agradáveis, divertidas, inusitadas, felizes.
O sentido que damos às coisas também altera a nossa forma de perceber e sentir o mundo. A percepção da vida como um campo de múltiplas possibilidades, incertezas e do inesperado precisa ser considerado também. Essa magia faz parte da arte da vida. Zygmunt Bauman, em sua obra “Babel” (2016, p.9), cita um conto narrado por Aristóteles, em Metafísica. Ele relata que, “com medo de ser roubado, um homem esconde um tesouro no campo. Outro homem ‘cava um buraco para plantar uma árvore, mas em vez disso acha um tesouro’. Cada homem realiza uma ação buscando um fim, contudo o acaso intervém, acaso que, misturando as duas ações, produz um resultado inesperado, involuntário, decerto não procurado.”
Nos nossos encontros ou desencontros com a vida é preciso considerarmos a perspectiva das incertezas, do vir a ser, e que isso reside na construção do tecido social, humano, na busca pela felicidade. Precisamos aprender a sair do controle das coisas, sobretudo, daquilo que não depende de nós. Bauman (2009, p. 9), na sua obra “ A Arte da Vida”, refletindo sobre a felicidade, ressalta que a “estratégia de tornar as pessoas mais felizes aumentando suas rendas aparentemente não funciona. Por outro lado, um indicador social que até agora parece estar crescendo de modo exponencial, paralelamente ao nível de riqueza […] é a taxa de criminalidade: roubos a residências e de automóveis, tráfico de drogas, suborno e corrupção no mundo dos negócios. E cresce também uma incômoda e desconfortável sensação de incerteza difícil de suportar, e com a qual é ainda mais difícil conviver permanentemente”.
Por isso, o amor deve sempre vigiar a justiça
Pensando no mundo, como construção nossa, na toxidade veiculada pelas violências, nas nossas interconexões e na perspectiva de que somos interdependentes, vemos que precisamos enxergar melhor as relações que estabelecemos com a sociedade, com as outras pessoas e com a vida. Emmanuel Lévinas (2004, p.148), filósofo francês, na obra “Entre Nós”, fala da relação entre justiça e o amor. Afirma que a justiça nasce do amor, mas “isto não quer absolutamente dizer que o rigor da justiça não se possa voltar contra o amor, entendido a partir da responsabilidade”. Por isso, o amor deve sempre vigiar a justiça, como lembra Lévinas.
Quando um de nós é ferido, toda humanidade é machucada também.
Aprendendo a ser feliz e buscando uma vida que envolva a consciência cidadã, acolhedora, solidária e respeitosa, não podemos deixar de citar o episódio aviltante referente a Mariana Ferrer. Essa atitude com Mariana, na audiência, revela muito fortemente os reflexos de uma mentalidade machista, misógina, classista, individualista, conservadora, retrógrada, desrespeitosa, excludente e por demais violenta. Os papéis do judiciário, Ministério Público e do advogado do acusado precisam ser problematizados. Não estamos generalizando, pois é certo que muitos desses profissionais têm prestado serviços de muita valia para a sociedade, contudo, a forma como Mariana Ferrer foi tratada, nessa audiência, violou seus direitos humanos, ferindo a sua dignidade e nos violentando também. Quando um de nós é ferido, toda humanidade é machucada também. A violência é sistêmica e precisa ser enfrentada e erradicada. O movimento em busca de convivências saudáveis e felizes não coaduna com o ódio, a exclusão e as múltiplas formas de violências.
Bauman (2009, p.9) afirma, ainda, na Arte da Vida, que “nossa era moderna começou verdadeiramente com a proclamação do direito humano universal à busca da felicidade […]”. Nessa busca incansável, pela felicidade é importante perceber que esse estado de bem-estar, essa sensação de paz deve se coadunar com o bem-estar do outro, o caminho já é a felicidade quando, por exemplo, nos nossos atos preservamos a dignidade do ser humano, acolhemos, somos amorosos e respeitosos. Felicidade e direito humano se coadunam quando se busca o bem-comum de todo ser humano e quando a ética da alteridade nos ensina que só existimos na relação com o outro.
É interessante pensarmos quais são as barreiras que nos separam enquanto pessoas, nas nossas humanidades, em relação ao outro e a natureza. O monge budista, Thich Nhat Hanh, vietnamita, poeta, escritor, acadêmico, ativista da paz e dos direitos humanos, nomeado ao Prêmio Nobel da Paz por Martin Luther King Jr, em sua Obra “ A Arte de Viver” (2018, p.31), afirma que “é impossível desenhar uma fronteira entre eu, você e o resto do cosmo”. Não existe inseparatividade. Quando alguém é afetado, todos somos afetados de alguma forma. Nós precisamos aprender a conviver, essa aprendizagem tem a ver com a perspectiva de felicidade, pois não tem sentido a ideia de sermos felizes sozinhos. E diz também Thich Nhat Hanh (2018, p.31), que “quando nos libertamos da ideia de individualidade, surgem a compaixão, o entendimento e a energia de que precisamos para ajudar”.
Assim, se pretendemos a felicidade não podemos prescindir de enxergar as outras pessoas, os seres, a natureza.
O monge budista traz conceitos como “interser” e “intersomos”, mostrando as nossas intersubjetividades. Assim, nós intersomos com todos. Quando Mariana Ferrer foi constrangida e agredida na sua dignidade, nós também fomos afetadas, pois nos sentimos feridas também. Quando alguém tem seus direitos humanos violados, essa violência é infligida a cada um de nós de formas variadas. O que significa a violência que ronda a sociedade senão os reflexos das violências impostas ao ser humano que retorna a cada um de nós? Por isso, o líder espiritual budista, Thich Nhat diz: “ Sim, esse sou eu”, “essa sou eu”, a menina pobre, abandonada etc., esses, essas são todos nós. Assim, se pretendemos a felicidade não podemos prescindir de enxergar as outras pessoas, os seres, a natureza. Lembremo-nos, intersomos!
Gostaria de pensar um pouco fora da caixa, ampliar o olhar, e refletir rapidamente sobre uma das obras do monge budista “A Arte da Vida”. Ela traz o gênero de autoajuda, que eu problematizo e digo que essa obra traz uma valiosa filosofia de vida, traz uma cultura milenar, em desacordo com as críticas comumente atribuídas às obras de autoajuda com suas formulas fáceis de sucesso e de ser feliz e que muitas vezes imputam a pessoa a responsabilidade por sua própria felicidade de forma descontextualizada. Não tenho nada contra essas obras. Se ajudam, se a pessoa se torna um ser humano melhor, respeitador, solidário, ético, já contribui bastante. Devemos, a meu ver, ler o que desejamos. Contudo, é preciso saber o teor do que lemos, qual a sua intencionalidade e como a utilizamos.
O monge budista diz que “quando produzimos um pensamento de ódio, raiva ou desespero, isso nos fere e fere o mundo”.
Continuando com a reflexão proposta por Tchic Nhat Hanh (2018, p.81), o qual afirma que produzimos energia ao longo da vida: “Dizemos e pensamos coisas, e cada pensamento, palavra ou ação carrega nossa assinatura. O que produzimos em forma de pensamentos, falas e ações continuam a influenciar o mundo, e esse é o nosso corpo de continuação”. Aquilo que exprimimos, pensamos, agimos afeta o mundo, marcam as pessoas. Quais as marcas que estamos registrando no mundo? O que deixamos nas nossas relações interpessoais? Como estamos afetando as pessoas que passam por nós? A felicidade tem a ver com esses encontros, que muitas vezes são desencontros, mas que compõem as contradições da vida, o fazer humano. A questão é: o que nutrimos no nosso caminhar? O monge budista diz que “quando produzimos um pensamento de ódio, raiva ou desespero, isso nos fere e fere o mundo”. Esse tipo de escolhas podemos fazer. Na busca pela felicidade, o pensar está intrinsecamente ligado. Podemos nos observar melhor para produzirmos pensamentos positivos, agradáveis, amorosos, compassivos.
Nossas palavras também são energias, como ensina o monge budista. Devemos aprender a arte de nos comunicarmos para que nossas palavras gerem acolhimento, amor e compreensão. Ele diz ainda que “as palavras às vezes ficam doentes e nós temos que curá-las”. Ressalta que precisamos usar a linguagem de forma mais cuidadosa. Diz que o “Amor é uma bela palavra e temos que restaurar o seu significado”. O que é o amor para nós? Podemos desejar e viver a felicidade sem amor? O biólogo Humberto Maturana nos alerta que sem amor não existem relações sociais. É pelo amor que nos humanizamos e penso que podemos ser felizes.
O amor pode ser também considerado poesia. Assim, à guisa de findar o texto, provoco um encontro com a poesia por meio da música que pode nos proporcionar felicidade: “Um girassol da cor do seu cabelo”, dos compositores Márcio Borges / Lô Borges, com a voz de Milton Nascimento: Se eu cantar não chore não/ É só poesia/Eu só preciso ter você/Por mais um dia/Ainda gosto de dançar/Bom dia/Como vai você?
*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.
Vera, sua instigante narrativa, mostra sua arte de saber usar as palavras, revelando um arco-iris de sabedoria em torno das relações humanas e filosofia da vida. Reconhecer o outro, saber escutar, ter um olhar sensível, perceptível e acolhedor, deverá sempre ser nossa meta. Vamos fazer um apelo a humanidade: positividade, amor e amizade em profusão, não fazem mal a ninguém.
Querida Lucia,
gostei muito do seu comentário, muito bonito.
Vc sempre é muito coerente e sensível em refletir sobre as experiências da vida.
Pensar em nosso papel diante do mundo , das nossas relações é fundamental para transformação social.
Obrigada. Abraços.
Esse texto é suave, reflexivo e contextualuzado. Adorei conhecer o interser e o intersomos, especialmente quando passamos por essa pandemia. E muito forte pensarmos que aquilo que dizemos e ou agimos carrega nossa assinatura, mostra nossa identidade. E fiquei refletindo sobre as marcas que estamos ou que estou deixando no mundo. Excelente leitura. Parabéns Vera!
Lourdes, querida , fiquei muito feliz que tenha gostado do texto.
Sim, o conceito de intersomos dialoga com o princípio da interdependência , estamos todos interligados.
Gratidão!
Abraços.
Vera, lendo seu texto, fiquei refletindo como é preciso pensar os (des)encontros no caminhar, no viver, no olhar, no estudar, no sonhar e no….
Excelente reflexão, como de costume.
Estimado Fernando, muito grata pela sua excelente observação.
Essa questão que vc traz dos (des) encontros da vida e como caminhar diante dessa premissa também me chama a atenção.
Os desencontros são inevitáveis , faz parte da vida. Assim, penso que os encontros e desencontros compõem as dimensões da vida .
Aprender com essas experiências e que os (des) encontros nos mostrem possibilidades de convivências melhores, acolhedoras, inclusivas . Amorosas e éticas.
Abraço.
“Pro dia nascer feliz/ para o mundo inteiro acordar/ e a gente sorrir…” Amei, Verinha!
Zelia!!! Obrigada querida ! Feliz que tenha gostado! Bjs