SALA DE CINEMA – “Eyimofe (Esse é Meu Desejo)”, o filme nigeriano vencedor da 44ª Mostra de SP
Pedro H. Azevedo*
Em 08.11.2020
Por conta da pandemia, a 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi realizada online entre os dias 22 de outubro e 4 de novembro, fazendo com que pessoas de todo o país pudessem assistir os 198 títulos disponíveis, que variam entre produções brasileiras e estrangeiras e documentário e ficção. No último dia da mostra os ganhadores foram divulgados e o vencedor do principal prêmio, o Prêmio do Júri, entre os filmes de ficção, foi o nigeriano Eyimofe (Esse é Meu Desejo).
Antes de entrar propriamente no filme, vale a pena falar muito rapidamente do cinema existente na Nigéria. Chamada de Nollywood, a indústria de cinema da Nigéria é um caso à parte de qualquer cinema do resto do mundo. Seu crescimento começou no início dos anos 90, por conta da paralisação de produções realizadas nos canais de televisão nigerianos, devido a uma crise econômica no país. Isso levou diversos profissionais do audiovisual sem emprego a produzirem filmes independentes. Sempre simples e com orçamentos baixíssimos, os filmes eram feitos e lançados diretamente em vídeo. O sucesso foi estrondoso e desde então a chamada Nollywood só aumentou a quantidade de filmes produzidos — sendo praticamente todos feitos direto para Home Video, devido à falta de salas de cinema no país — a ponto de hoje o país ser a segunda maior indústria de cinema do mundo, ficando atrás apenas de Bollywood. (Ballerini, Franthiesco. História do Cinema Mundial. São Paulo: Summus, 2020).
Por serem distribuídos em DVDs e não irem para o cinema, toda essa produção acaba circulando apenas dentro do mercado africano e não chega ao resto do mundo, que costuma consumir os filmes nas salas de cinema. Mas, desde o início da década passada, com o surgimento dos serviços de streaming e o aumento da velocidade da internet, esses filmes estão se tornando cada vez mais acessíveis para o resto do mundo; a Netflix inclusive já possui uma sessão especial para os filmes de Nollywood no seu catálogo e até mesmo produziu filmes originais feitos na Nigéria. Inserindo Eyimofe (Esse é Meu Desejo) neste contexto, é possível vê-lo como um filme que tenta levar o cinema nigeriano para novos ambientes, como os grandes festivais de cinema do mundo.
O filme que fez sua première no Festival de Berlim de 2020 é o primeiro longa-metragem dos diretores Arie Esiri e Chuko Esiri, irmãos gêmeos nigerianos que estudaram cinema em conceituadas universidades norte-americanas: Arie na Universidade de Columbia e Chuko na Universidade de Nova Iorque. Isso reflete diretamente na qualidade técnica do filme, já que Nollywood ainda sofre bastante pela falta de qualidade de suas produções.
O roteiro escrito por Chuko Esiri vai mostrar a vida de dois moradores da região pobre de Lagos – mais populosa cidade do continente africano, com 21 milhões de habitantes em sua região metropolitana – que planejam emigrar para países europeus em busca de uma melhor condição de vida. O primeiro que acompanhamos é Mofe (Jude Akuwudike), um eletricista que trabalha para uma gráfica e está planejando viver na Espanha, porém seus planos são interrompidos por uma grande tragédia familiar que faz com que ele precise repensar todo o seu futuro e ressignificar seus valores e seus sonhos. Já na segunda história vemos Rosa (Temiloluwa Ami-Williams), que trabalha como cabeleireira e bar tender e tem o sonho de emigrar junto com sua irmã mais nova para a Itália, mas para isso acontecer ela precisa lidar com as adversidades de viver em um mundo cruel que mede tudo por uma lógica de mercado. As duas histórias independentes, mas que constantemente se cruzam, vão mostrar a extrema dificuldade que é viver dia após dia em busca de objetivos que o mundo parece querer sempre destruir. É nessas duas histórias, que os diretores escolhem tratar em dois capítulos distintos dentro do filme, que a dura realidade da vida urbana da Nigéria é revelada.
É incrível como os irmãos Esiri dirigem com tanta sutileza e precisão já no seu primeiro filme. Mesmo contando uma história pesada que poderia cair facilmente no melodrama, eles conseguem trabalhar tudo com um realismo que se aproxima do drama sempre de maneira genuína. Em nenhum momento o filme parece explorar o sofrimento alheio para encontrar um impacto no espectador. As coisas fluem de maneira orgânica e natural e o drama nasce não de uma abordagem espalhafatosa que possa soar apelativa, mas da realidade vivida pelos personagens. Uma forma respeitosa e bela de retratar o drama alheio que acontece na vida de milhares de africanos. As atuações contidas e naturais, os movimentos de câmera sutis e não invasivos, o ritmo mais lento e quase rotineiro da narrativa são escolhas presentes aqui que evidenciam esse realismo que é difícil de se chegar sem tornar o filme desinteressante, insensível e emocionalmente estéril, coisas que Eyimofe (Esse é Meu Desejo) não é.
Esse realismo aproxima bastante o filme do cinema neorrealista italiano, que retratou o período de miséria e sofrimento do pós-guerra da Itália através de uma estética que revolucionou o cinema, ou até mais do cinema de Taiwan dos anos 80/90, que retratou como nenhum outro o drama social dos habitantes das grandes cidades que vivem em um mundo capitalista que se movimenta cada vez mais rápido e dilui qualquer traço de identidade cultural e social que não possua um valor financeiro explícito. Então, assim como nos filmes dos diretores Edward Yang, Hou Hsiao-hsien e Tsai Ming-liang, o ambiente e a cidade são elementos principais dentro da narrativa. São os ambientes que revelam a estrutura daquela sociedade e a mistura presente nos grandes centros urbanos entre uma particularidade muito específica de cada povo e uma atmosfera comum às megacidades do mundo que padroniza tudo através de uma lógica utilitarista. A escolha de fotografar em 16mm, formato que possui uma textura que “materializa” bem a realidade, e a excelente direção de arte conseguem nos inserir dentro de Lagos com maestria; vemos uma cidade de cores destacadas, de movimento constante e de desigualdades gritantes.
No filme, acompanhamos a rotina de trabalho dos dois protagonistas e o desenvolvimento das relações familiares e amorosas deles.
A procura por uma vida melhor fora da Nigéria e as dificuldades que os dois personagens enfrentam servem como pontos de partida para discussões que estão presentes em praticamente todos os países africanos e latinos. No filme, acompanhamos a rotina de trabalho dos dois protagonistas e o desenvolvimento das relações familiares e amorosas deles. Porém, essas relações, por conta das dificuldades e desigualdades sociais, são sempre diluídas em relacionamentos que só enxergam o outro como algo que só possui valor se for capaz de trazer algum retorno material, ou seja, vemos uma sociedade que não é capaz de gerar relacionamentos genuínos e que só enxerga o ser humano como um mero meio que possa tirar o mar de miséria que engole milhões de pessoas que vivem em condições de pobreza.
E nesse mundo que visa somente o bem estar material e o sucesso como fim fundamental para a vida, algo que rapidamente é deixado de lado é a própria identidade familiar e cultural, situação que o filme vai explorar bem. Será que a emigração para um local onde a vida é, do ponto de vista financeiro, mais tranquila compensa a ausência familiar e cultural?
Mesmo encerrando oficialmente na última quarta-feira, a Mostra de SP está exibindo os seus filmes no período de repescagem até hoje (domingo, 07/11), incluindo Eyimofe (Esse é Meu Desejo). O filme pode ser alugado por 6 reais. Para conferir o filme clique aqui.
*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.
Foto: 44.mostra.org
Parabéns mais uma vez Pedro, pelo atrativo conteúdo do texto. Sempre aprendo um
pouco mais sobre o mundo do cinema. Obrigada por compartilhar tantas informações bacanas. Quero assistir “ Esse é meu desejo” o título já é atraente!
Obrigado pelo comentário, Vera! Um abraço!