Uma mulher abandonada e humilhada pela justiça

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 09.11.2020

A violência no mundo tem crescido assustadoramente e no Brasil não tem sido diferente. Não deveria ser assim se a nossa busca enquanto seres humanos estivesse voltada para a verdadeira finalidade: viver em paz, reconhecendo o outro enquanto seu semelhante.

A violência está impregnada na vida das pessoas. A vida é subtraída levianamente em qualquer situação. Em casa, na rua, no trânsito e ultimamente também nas escolas. Mas a violência surge de onde menos se espera. Aparece de forma individualizada, mas é comum vir através de ação coletiva, mesmo sem subtrair a vida, quando aparecem sob o manto das legislações e sob a ação institucionalizada.

A nossa sociedade está impregnada da violência física, psicológica, moral, sexual, econômica e social. Vivemos com intensidade situações onde ocorre a violência social, ou seja, atitudes resultantes da utilização da força de um grupo social sobre outro: discriminação, preconceito, desrespeito às diferenças, intolerância ou submissão de pessoas a outras pessoas.

De todas as violências que nos assustam, talvez a mais degradante seja a violência contra a mulher, porque geralmente ela é praticada dentro da família e em circunstâncias onde prevalece o machismo.

O machismo é a opressão, submissão imposta às mulheres pelos homens através dos séculos.

A violência contra a mulher é todo ato lesivo que resulte em dano físico, psicológico, sexual, patrimonial, que tenha por motivação principal o gênero, ou seja, é praticado contra mulheres expressamente pelo fato de serem mulheres.

“O machismo não é invenção moderna. Acompanha as culturas das quais somos herdeiros há milênios. Pode ser encontrado em ainda outras mais. Em praticamente todos os tempos históricos. O machismo não nasceu com o capitalismo: o capitalismo é que foi forjado sobre um pensamento machista. O machismo não nasceu com a Igreja: a Igreja é que tomou os contornos dele. O machismo não nasceu com a propriedade privada no pré-feudalismo europeu: esse último é que se baseou nele. O machismo não tem origem, nacionalidade. Não depende do racismo nem de classes sociais para existir. O machismo está aí — porque só passamos a enxergá-lo há pouco mais de um século, contra milênios de sua existência anterior. Porque lutamos umas poucas pessoas contra ele, enquanto as estruturas mais elementares da nossa sociedade (Estado, religião, família, conhecimento, educação, escola, ciência, filosofia, indústria, classes, racismo) já nasceram modeladíssimas por ele. O machismo é a hegemonia, descritinha, sem tirar nem por. O machismo pode ser destruído..”( Marília Moschkovich-Socióloga)

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em conjunto com o Instituto Datafolha, a maioria da população brasileira sente que a violência contra a mulher aumentou entre 2007 a 2017, sendo a maior percepção na Região Nordeste (76%), seguida pela Região Sudeste (73%). Além disso, dois a cada três brasileiros viram alguma mulher sendo agredida em 2016, sendo que a maior percepção dessa violência se encontra entre negros. 75% dos estupradores são conhecidos das vítimas.

Até mesmo Ataulfo Alves, autor de sambas imortais como “Ai que Saudade da Amélia” e “Mulata Assanhada”, grande compositor e músico de sua época, encontrou forma de romancear o machismo escondido nos ditos populares, mostrando com bom exemplo, que o machismo aliado à cultura da dominação não apenas são admitidos, mas são romanceados e admirados. Ainda…

A luta contra o machismo e contra a violência que vitimiza a mulher, no Brasil, é muito jovem.

No dia 10 de outubro de 1980, há exatos 40 anos, um grupo de mulheres se reuniu nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo para se manifestar contra o aumento dos casos de violência de gênero no Brasil. Desde então, a data é lembrada como o Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher. (Universa)

Após 40 anos, a sociedade brasileira, através das redes sociais, é sacudida com a repercussão de um julgamento sobre o estupro de uma jovem de 21 anos. As provas foram ignoradas e o cenário do julgamento transformou-se na expressão assumida do machismo.

O ritual apresentado através de vídeo parecia a expressão maior da desconstrução da imagem da vítima que nos crimes de estupro e assédio sexual coloca a mulher como o símbolo da maldade, falando de sua roupa, do seu comportamento, na tentativa de convencer o juiz de que ela consentiu com o ato. “A vítima muitas vezes acaba tendo que se defender pois passa a se sentir acusada e não mais uma vítima”, diz a advogada Juliana Sa de Miranda, sócia da área penal do Machado Meyer Advogados.

O tribunal, nesse momento, assumiu mais uma ação de violação, coletiva e institucional, com o machismo exposto no caso Mariana Ferrer, colocando assim Justiça no banco dos réus.

O autor do estupro, um homem branco, rico e julgado inocente.

A vítima, uma jovem mulher pobre e abandonada pela justiça.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.