Acabaram as livrarias
Eugenio Jerônimo*
Em 14.11.2020
Foi de uma livraria que a mãe de um muito jovem aspirante a escritor, de nome Gabriel Garcia Marques, arrancou-o para leva-lo numa viagem que mudaria sua perspectiva literária. A volta à Aracataca despertou a faísca de Cem Anos de Solidão, o resto da história é bem conhecido. Gabo cruzava duas vezes por dia os batentes da Livraria Mundo, em Barranquilla para discutir o fazer literário com seus amigos jovens escritores.
Quando precisava assaltar uma entrevista de Graciliano Ramos – eventos de que sempre fugia –, o jornalista Joel Silveira ia emboscá-lo às mesas da livraria-editora José Olympio, no Rio de Janeiro.
Mas as livrarias acabaram, são um fenômeno que ficou no século passado. Ainda há muitas lojas que se dedicam ao varejo do livro, embora no Brasil duas grandes cadeias tenham ido à bancarrota e haja no mundo uma tendência à gigante do comércio eletrônico, a Amazon, predar todo o setor.
A entrada desaponta o nariz ansioso por cheiro de livro novo.
Ontem mesmo fui a uma loja do gênero. O prédio é novo, de arquitetura moderna, amplo e o seu interior deixa todas as coisas respirarem. A entrada desaponta o nariz ansioso por cheiro de livro novo. Expõe esculturas de metal, figuras de Dom Quixote, nas quais se o artista pouco se arrisca muito não erra. Oferece também globos terrestres, ampulhetas, suporte para incenso. Revistas, muitas revistas. E canetas em mais modelos, tipos e cores que se pode imaginar. Porém, atravessada a revistaria, surgem as estantes generosas em livros. Há muitos títulos de literatura da moda, mas também os há de obras de verdade.
Nos dirigimos, Flávia e eu, ao café. Ela com Daniel L. Everett: Linguagem, a história da maior invenção da humanidade; eu com Valter Hugo Mãe, O remorso de Baltazar Serapião. Entre uma torta, que era boa, e um café, que não era mau, assistíamos às evidências do fim das livrarias.
Sem maior indiscrição, ouvíamos o cardápio verbal das três mesas próximas. Na primeira, dois rapazes planejam um evento de bikes. Na segunda, um jovem está em muitos lugares, participando de uma teleconferência sobre vendas. Na terceira, a conversa está mais animada. Uma arquiteta apresenta um projeto do interior de um apartamento a um jovem casal.
Portanto, ninguém ali fala de literatura. As casas de vender livro persistem e vão continuar até que todos os ramos do comércio se convertam ao modo virtual. Mas as livrarias já não existem mais porque suas paredes já não têm ouvidos para a literatura.
*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.