SALA DE CINEMA – Infância, morte e a ditadura de Franco em “O Espírito da Colmeia” e “Cria Corvos”

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 15.11.2020

No dia 6 de novembro, o serviço de streaming Petra Belas Artes À La Carte, com o apoio da Embaixada da Espanha, deu início à “Mostra Grandes Mestres do Cinema Espanhol”. Com filmes que vão de 1955 à 1984, a mostra apresenta oito filmes do cinema espanhol dirigidos por nomes como Luis Buñuel, Carlos Saura e Víctor Erice. Os filmes ficarão disponíveis até o dia 17 de novembro para os assinantes do serviço.

Dos oito filmes da mostra, destaco dois que parecem quase “irmãos” dadas as semelhanças que guardam entre si: O Espírito da Colmeia e Cria Corvos. O primeiro é de 1973 e foi dirigido por Víctor Erice. Já o segundo foi lançado 3 anos depois com a direção de Carlos Saura. A primeira semelhança entre os dois é a protagonista, Ana Torrent, atriz mirim que fez sua estreia nos cinemas com o filme de Erice com apenas 6 anos e dois anos depois fez seu segundo papel no filme de Saura. Nos dois filmes a atuação de Ana Torrent é o fio condutor da narrativa. É através do seu expressivo semblante inocente e introspectivo, dos seus curiosos e infantis olhos que a morte e a finitude da existência vão ser encaraas e os males da sociedade vão ser revelados. E é no retrato dessa sociedade que temos outro ponto de encontro entre os dois filmes, mas, antes é interessante falar um pouco das premissas de cada obra.

O Espírito da Colmeia se passa no interior da Espanha, em 1940, onde Ana (Ana Torrent), de seis anos, vive com sua irmã mais velha, Isabel (Isabel Tellería), e seus pais, Fernando (Fernando Fernán Gómez) e Teresa (Teresa Gimpera). Um dia, um cinema itinerante chega na cidade e exibe Frankenstein (1931). Após assistir ao filme, Ana fica impactada pelo monstro de Frankenstein, especialmente pelas cenas que ele mata uma criança e que é morto. A criança passa então a ter curiosidade e fascínio pela morte e, estimulada por provocações de sua irmã mais velha, começa a criar um mundo próprio onde as complexidades da vida são explicadas.

A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) deixara centenas de milhares de mortos e terminara com a vitória dos nacionalistas e com o Estado dominado pelo ditador Franco

Já em Cria Corvos acompanhamos três irmãs, com um foco na do meio, a personagem de Ana Torrent (que também se chama Ana), que pouco tempo depois da morte da mãe, precisam lidar com a morte do pai, um oficial do regime franquista. Ana e suas irmãs passam a morar com sua tia e Ana começa a criar fantasias sobre a vida e a morte ao mesmo tempo que convive com a dor da ausência materna.

A escolha de Erice e Saura ao retratarem o sentimento desolador de ter que lidar com a finitude da vida na infância não é acaso nem coincidência. Nas duas obras é possível enxergar um subtexto que se relaciona com o que a Espanha viveu e vivera nas últimas décadas. A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) deixara centenas de milhares de mortos e terminara com a vitória dos nacionalistas e com o Estado dominado pelo ditador Franco. Durante o regime franquista, a repressão, censura e as execuções políticas eram comuns (o número de mortos e desaparecidos durante a ditadura franquista é de mais de 100 mil pessoas, mas o número exato ainda é uma incógnita e os documentos que registram  continuam sendo segredos do Estado espanhol). E foi nessa realidade que Carlos Saura (nascido em 1932) e Víctor Erice (nascido em 1940) viveram sua infância e juventude. Dos dois, Cria Corvos é o que deixa esse aspecto mais a mostra, já que o filme é um grande flashback.

Em O Espírito da Colmeia Erice mostra o início do regime franquista não de forma explícita, até porque o filme foi feito durante a ditadura e precisava burlar a censura, mas utiliza a incompreensão do ponto de vista de Ana para revelar todo o sentimento de morbidez e fragmentação que o país viveu durante o governo de Franco. Assim, no filme, como Ana, mesmo que não entendamos exatamente o que está acontecendo de fato sentimos o efeito da aura de morte e desolação que assolava a todos. A maneira como Erice vai mostrar os pais de Ana simboliza bem tudo isso. Ambos vivem uma espécie de luto solitário que nunca é verbalizado nem compartilhado; o pai é um apicultor que também passa seus dias escrevendo sobre as abelhas; a mãe é uma figura ainda mais distante e enigmática. Na sua cena mais reveladora ela parece estar escrevendo uma carta para um amante que partiu por causa da guerra. E como uma doença contagiosa, os sentimentos dos adultos são passados para as crianças, que não conseguem entender plenamente o que está acontecendo realmente e, dotadas de uma curiosidade insaciável e de uma imaginação sem limites, ingênua e doce, passam a criar narrativas que expliquem o porquê das coisas.

Semelhante a Erice, Carlos Saura também vai trabalhar a ditadura de Franco no seu filme, porém, aqui tudo já é mais direto (o filme foi lançado um ano após o fim do governo de Franco). O pai de Ana e suas irmãs é um militar que serve ao governo franquista e é o mais próximo que o filme possui de um antagonista no filme. Seu comportamento é de desprezo pelas filhas e mulher. Ele é visto como uma presença ameaçadora que oprime as personagens. Ele simboliza o tratamento que o regime dava à população espanhola durante 36 anos.

Mas os filmes serem uma consequência ou resposta ou até mesmo um exorcismo do franquismo da alma dos artistas não quer dizer que o filme se limita a apenas isso. Os dois filmes vão além de uma discussão histórica sobre a Espanha e conseguem atingir valores universais sobre o momento em que a criança começa a tomar consciência da finitude da existência e da morte. A maneira como os dois filmes fazem isso é bela e tocante.

Tanto o roteiro de O Espírito da Colmeia quanto o de Cria Corvos possuem uma espontaneidade e uma falta de objetividade que ressaltam o naturalismo com que as descobertas infantis se dão. Mas o grande mérito de ambos os filmes não poderia deixar de ser Ana Torrent. A pequena atriz consegue fazer o que poucos atores, até mesmo adultos, conseguem. Quase sempre com um semblante sério e introspectivo, ela transmite sem precisar falar quase nada, somente através de seu olhar, um fascínio e ao mesmo tempo uma tristeza genuína que comove por ser carregada de um inocência própria da infância. Depois de ver os dois filmes, é natural enxergar Ana Torrent como a “alma” dos dois filmes. É a partir de sua atuação (e aqui é possível entrar em uma discussão sobre o que foi atuação e o que foi o comportamento espontâneo da Ana criança) que as escolhas estéticas parecem seguir. Os dois filmes vão flertar com uma abordagem sobrenatural, muito em conta da própria mente imaginativa e fantasiosa infantil, mas que é acentuada pela atuação de Ana Torrent. Seus grandes olhos negros fitam o mundo real e parecem enxergar algo a mais. Algo que foi notado e bem explorado por Erice e Saura.

Das obras cinematográficas que tratam da infância com uma postura mais psicológica, O Espírito da Colmeia e Cria Corvos são duas das melhores e influentes já feitas. Assistir a esses dois filmes em uma sessão dupla é uma ótima experiência para captar o sentimento de viver na Espanha de Franco e para além disso, relembrar o precioso e singular momento da infância que passamos a sentir e perceber o mundo como um local de perdas incontroláveis.

 *Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.