O escritor moçambicano Mia Couto e ‘A confissão da leoa’

Por

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy*

Em 15.11.2020

Mia Couto (Beira, Moçambique, 1955) contou em entrevista que o nome pelo qual é conhecido, Mia, não foi recebido no batismo. Ainda pequeno, brincava com gatos, e dos felinos, e de sua proximidade com esses animais, é que Antonio Emilio Leite Couto teria se tornado Mia Couto. Felinos miam, e do verbo correspondente (miar) tem-se um substantivo próprio (Mia) tão sugestivo. Essa relação com felinos transcende a infância, alcança a mitologia africana, refere-se a experiência pessoal e dá pano de fundo a este belíssimo livro “A confissão da leoa”. Dependendo do modo como lido, tem-se também um inteligente desagravo em favor da estabilidade das relações do homem com a natureza. Mais. É um livro de militância pela causa feminista. É um livro cheio de sensibilidade, para um leitor sensível.

Mia Couto também é biólogo, trabalha com consultorias na área de licenciamento ambiental. Com colegas de trabalho foi surpreendido com ataques que leões faziam em um determinado local, onde pesquisavam. Situação apavorante. Do fato real concebeu o relato. Tem-se assim na narrativa um fundo real. Em “A confissão da leoa” há inclusive o personagem Gustavo Regalo, o escritor, em quem o leitor reconhece menção de Mia Couto a si próprio, ainda que de modo nada heroico. Vê-se como “um homem branco, baixo, de barba e de óculos (…) parece gostar de seu próprio nome”. Havia visto leões em safaris fotográficos, mas não sabia o que era um leão. Segundo o narrador, “o leão só se revela, em verdade, no território em que ele é rei e senhor”. O escritor confessa que “houve tempo em que sonhava usar uma arma, queria ser guerrilheiro”. É a reminiscência do militante da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Não pegou em armas porque aos brancos era interdito a luta armada, designando-se lhes outras missões.

 

O tema da mulher, e da opressão da mulher, e da luta da mulher, parece ser central em “A confissão da leoa”. A primeira frase do livro já sinaliza com o caminho da narrativa: “Deus já foi mulher”. É um livro que trata da violência cotidiana, exercida contra as mulheres em contexto específico do norte de Moçambique, mas que pode ser, ao mesmo tempo, qualquer outro ponto do mundo. Há outros temas que também flutuam na narrativa, a exemplo da opressão política, da metamorfose dos seres e da vida, e mesmo o incesto e o desequilíbrio ecológico.

O lugarejo está atemorizado com ataques de leões (ou de leoas) que vitimam as mulheres. Lamenta o narrador que todas aquelas mulheres devoradas já estavam mortas há muito tempo. Desde que nasceram. Oprimidas pela vida. A técnica narrativa desdobra-se em duas estórias paralelas. O caçador narra sob seu ponto de vista. Uma habitante da vila apresenta outra versão, revelando-se, de algum modo, verossímil ou não, como a felina predadora. Há, assim, “a versão de Mariamar”, habitante da vila, e o “diário do caçador”. Em qual confiar?

Os capítulos contam com expressivos provérbios africanos em suas aberturas. Lê-se, entre outros, que “quando as teias de aranha se juntam elas podem amarrar um leão”, ou “tem cuidado com os leões mas tem mais cuidado ainda com a cabra que vive no covil dos leões”. O leitor não esquecerá passagem dando conta de que “até que os leões inventem suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”. Da lógica dessa recolha de sabedoria ancestral Mia Couto constrói a ficção em torno dos vários temas que sugere.

Personagens têm vida própria e se sobressaem nas diferenças que os marcam. O pai da moça da vila é um pisteiro, conhece a savana e ajuda caçadores. Sua relação com a filha é conturbada, muito conturbada. Esse personagem pode significar o que de pior se imagina na violência humana. Sua esposa é conivente, disfarçando a ambivalência na saudade das demais filhas. Uma delas foi devorada por uma leoa e duas outras morreram em um desastre no rio. É uma família de “assimilados”. Eram cristãos. Aderiam aos valores do português colonizador. Viviam uma perene instabilidade.

Na narrativa lê-se que “o seu rosto vencia a tristeza”.

A filha devorada pela leoa ficou desfigurada: “Deitaram o que lhe sobrava do corpo sobre o lado esquerdo, com a cabeça virada para o nascente e os pés virados para o sul”. Na cerimônia fúnebre a mãe aparecia com o cabelo raspado, “em obediência ao luto”. Na narrativa lê-se que “o seu rosto vencia a tristeza”. De fato, reconhece-se “ninguém pede mais a atenção de uma mãe que um filho morto”. Não se escapa dessa lei da natureza.

Do lado do caçador há seu pai, também caçador, que faleceu em acidente provocado pelo outro filho. Recolhido em um hospital, esse outro filho é companheiro de uma enfermeira, por quem o irmão caçador se apaixonou. Há também a mãe, que morreu de uma estranha doença. Preponderava nessa família uma forma de loucura, que não era simples enfermidade; era uma condenação. O caçador afirmava que somente a caça o retirava daquele destino. Tinha noção da ancestralidade de sua missão como caçador. Ao mesmo tempo em que a arma era sua alma, acrescentou, não matava, caçava.

Quando as narrativas se cruzam conhecemos o administrador do distrito e sua esposa. Esta última, extremamente obesa (conta-se que vista de pé, parecia deitada), é encantadora. Oferece-se como isca para os leões. Mia Couto revela o que ela tinha em mente com a oferta, desejo desconcertante para o leitor mais pudico. Era a primeira-dama numa terra na qual não havia damas. Há também um político que queria capitalizar a captura do leão. Via-se amado pelo povo e pelo partido. Eliminar os leões era uma de suas metas. Há também um policial, o que não passa de ilusão. Naquele lugar não havia ordem. O policial de nada valia.

Mia Couto descreve a família da moça da vila. São sobreviventes de um mundo marcado pela guerra. Prepondera fortíssimo poder masculino. O marido não pode ser chamado pelo nome. Mulher e filhas não podem olhá-lo quando fala. O casal desafia as leis do lugar, amando-se em dia de luto: era o dia em que a filha fora devorada pela leoa. Ainda que cristã, a família era presa aos costumes e interdições locais. A moça da vila reconhece que em sua família as mulheres foram enterradas desde o sempre; todas foram sepultadas vivas. Eram desprovidas de vontades e de escolhas. Vingavam-se contra os homens quando desciam os rios, sozinhas, tocando-se.

Há na narrativa um fio que liga os narradores. A moça da vila (Mariamar) e o caçador (Arcanjo) se encontram no passado. Mariamar era devedora de Arcanjo, que a salvou do ataque do policial. Ela não esqueceu. Construiu esse não esquecimento em forma de paixão, ainda que não correspondida. Quando soube da chegada próxima de Arcanjo desceu o rio na expectativa de alertá-lo para os perigos que enfrentaria. Foi interceptada pelo pai. Naquelas paragens morava o medo. Paralítica por algum tempo, simboliza mulheres violentadas por agressores que saem dos mais insuspeitos lugares.

Mia Couto surpreende-nos com expressões locais. Exemplifica-se com “ntwangu” (marido), “anakulu” (o nosso mais antigo), “mweniekaya” (chefe de família), “ntumi va kuvapila” (leão-do-mato), “mbwanas” (madrinhas). Há a descrição de vários mitos, a exemplo da lembrança de que as mulheres, “desde há milênios, vão tecendo esse infinito véu”, que é o céu. Os mortos são ouvidos na primeira noite em que são enterrados, no momento em que se viram debaixo da terra.

A vida dura das mulheres é lembrada. Todas as madrugadas antecipam-se ao Sol. Logo cedo colhem lenha, buscam água, acendem o fogo, preparam o que comer, avivam o barro. A natureza é hostil, “na aldeia, até as plantas tinham garras”. Tudo o que era vida, prossegue a narrativa, estava treinado para morder. Mulheres condenadas a não terem filhos eram destinadas a nunca ser mulheres.

Quem chamou o caçador foram os leões, mas quem chamou os leões? O que prende na narrativa é que não se culpam os leões (ou as leoas) pelos ataques. Tem-se a impressão que intuitivamente todos concordam que os ataques tem como causa o desequilíbrio nas cadeias alimentares, que resulta da ação destruidora dos humanos. Há algum fatalismo que ronda aquela gente sofrida. Aceita-se.

Os leões deixam a savana e atacam. O que fazer? Na introdução Mia Couto registra que “aos poucos, os caçadores entenderam que os mistérios que enfrentaram eram apenas os sintomas de conflitos sociais que superavam largamente sua capacidade de resposta”. O leitor, ao fim deste belíssimo livro, pode concluir, desconcertado, que os mistérios que enfrentamos são também sintomas de conflitos sociais e existenciais para os quais não construímos respostas satisfatórias e convincentes. É o conflito, decorrente do conflito, gerando mais conflito. É preciso darmos um basta.

*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Artigo publicado originalmente no site da Revista Consultor Jurídico.