Eleições  no País de “Maricas”, Covid-19 e outros desalentos…

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 16.11.2020

Estamos aguardando os resultados das eleições municipais (há ainda o segundo turno em algumas capitais e cidades com mais de 200 mil eleitores) que definirão para novo mandato de quatro anos, prefeitos e vereadores eleitos pela população de “maricas”, conforme o adjetivo escolhido pelo presidente da República, para definir, identificar, conceituar, qualificar os brasileiros, angustiados e massacrados pela situação de vida imposta pelo novo coronavírus.

A fala do presidente sempre causa desalento, quase diariamente…

Perguntei ao dicionário sobre o significado da palavra maricas.  Eu ouvi falar pela primeira vez a palavra maricas ainda criança, morando na minha cidade natal, Ipu, no Ceará. Esta palavra sempre era usada para denominar o escrivão da nossa cidade e o coroinha da igreja, às vezes com afeto.

O escrivão, uma figura masculina, metódica, beirando seus setenta anos, cabelos pintados de preto, usando sempre suspensórios e sandálias com meias pretas, jamais sapatos, morava em frente a nossa casa. Privava da amizade de todos na cidade, até porque todos precisavam dos serviços do cartório. Claro que nós, crianças, gostávamos de visitá-lo para receber pirulitos, balas e saquinhos de bolachas da padaria. Além disso, era interessante observar sua casa cheia de papéis, livros, revistas e, sim, a presença do guarda chuva que era usado também na qualidade de guarda sol. Quando não estava no cartório ouvia a BBC de Londres e se dedicava às suas leituras e escritas.

O coroinha, um cidadão que labutou desde a adolescência nas atividades da igreja católica e que me ensinou a fazer flores usando papéis finos, tecidos como a seda e a preparar uma impecável mesa de aniversário usando flores naturais e até uvas passas em ramas para delícia dos convidados. Aos 48 anos casou com Dona Maria e ainda teve tempo ter uma dúzia de filhos. Todos de parto normal.

Desse tempo até agora já se passaram 65 anos.

O dicionário me respondeu que maricas é aquele “que tem comportamentos tidos como femininos; efeminado; que é homossexual; gay; repleto de covardia e medo”. Ou seja, o presidente considera que no Brasil mais da metade é de mulheres e a outra quase metade é afeminada, conforme a resposta do dicionário.

No entanto, o mundo mudou muito nas últimas décadas, mas o presidente continua apegado a sua cruzada de ataque aos brasileiros que o elegeram.

Em seu comentado artigo “O Jair que há em nós”, o professor, doutor em sociologia política Ivann Carlos Lago diz que “o  Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro”.

Segundo apontam suas  pesquisas, há um segmento da população brasileira que se identifica com as atitudes do presidente:“Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país… agora esse cidadão comum tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente, que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar um palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender…. a questão é saber como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo”, conclui o artigo.

Na verdade, em sua maioria os brasileiros devem sofrer com o medo do vírus e com medo das atitudes de um presidente que desde sua eleição se manifesta com o desequilíbrio necessário a manter a nação desassossegada… o medo de um vírus, que ameaça com a morte o mundo inteiro, não encontra razão para que a população seja afrontada por conceitos  homofóbicos vindos de um personagem em franco desequilíbrio, mesmo tendo sido eleito para presidente nas eleições passadas. O povo também erra, sobretudo quando se trata de eleger pessoas sem o devido compromisso para resolver os problemas básicos e espera um salvador da pátria.

As eleições municipais ocorreram em clima de apatia. Embora atravessemos uma década marcada pela discussão sobre o clima no meio de tamanha desigualdade social no mundo, os municípios nunca consideram que têm responsabilidade sobre as políticas públicas relacionadas a essas áreas.

Não encontramos programas de governos municipais preocupados com o  tratamento do lixo, com a recuperação dos rios, com a manutenção das nascentes de água, muito menos com o abastecimento de água potável para os munícipes. Embora se pense que sejam necessários rios de dinheiro para resolver esses problemas, os caminhos são encontrados através da educação. É com o conhecimento e através do seu uso no dia a dia de sua vida que o ser humano poderá formar a consciência de que, cuidando das riquezas naturais, tornará a vida mais saudável e próspera.

A  Extrema pobreza já atingiu 1,2 milhão de pessoas em Pernambuco, em 2019, maior nível em oito anos, tornando o Estado o terceiro mais desigual do Brasil, aponta o IBGE. Atualmente 70% dos municípios pernambucanos depositam o lixo em espaços a céu aberto, denominados lixões.

Questões como saúde, educação e mobilidade dominam as eleições municipais sempre e dialogam com o debate nacional porque afetam mais diretamente a vida das famílias, o que requer sempre um programa de governo que expresse com clareza as responsabilidades do município e do governo federal no gerenciamento do SUS. O que não ocorreu com a Covid-19.

Segundo Jorge Abrahão, coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, “é chegado o momento das cidades mudarem seu patamar de ação política e assumirem agendas importantes para contribuir com a construção de um país mais sustentável, com olhar para as futuras gerações”.

As eleições de 2020 foram pautadas pela sociedade com outros protagonismos como as agendas ambientais, equidade de gênero, LGBT e sobretudo as que perpassam as desigualdades sociais como o desemprego e as mudanças no mundo do trabalho. É de se esperar que as políticas municipais se encham de esperança, deixando para trás as guerras entre famílias chamadas tradicionais, o velho coronelismo político e a política como forma de carreira.

A alternância na política é o gás que manterá  acesa a chama da democracia.

Também não podemos esquecer que vivemos o processo eleitoral sob a ameaça do vírus. Já temos notícias sobre a lotação de hospitais particulares nas grandes cidades e até o ministro da Economia já sinalizou que terá continuidade o auxílio emergencial para os mais necessitados.

Além de ameaça à saúde, teremos ameaça de maior abstenção dos eleitores e consequentemente  a possibilidade de se ver afetada a representatividade dos eleitos.

O cientista político Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe), acredita que a pandemia afetará a disposição do eleitor em votar por duas formas: tanto devido ao temor de ser infectado ao sair de casa, quanto pelo esfriamento da campanha eleitoral, já que neste ano a realização de eventos na rua e de debates pelas redes de televisão foi reduzida como forma de evitar o contágio da doença.(entrevista BBC)

Esperemos que ao final do processo eleitoral, possamos ter um quadro de dirigentes políticos que nos tragam alento até 2022, ano da próxima eleição. Desta vez, para presidente da República.

Aí sim, espero que todos nós, maricas, homens, mulheres, gays, lésbicas, negros, índios…  que  todos  os  brasileiros, sejamos tomados pele coragem cívica e mudemos o presidente e que seja melhor, que nos respeite como cidadã(o)s de direitos.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.