SALA DE CINEMA – A Batalha de Iwo Jima e a desumanização da guerra pelos olhos de Clint Eastwood

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 22.11.2020

Das inúmeras e sangrentas batalhas da Segunda Guerra Mundial, a Batalha de Iwo Jima é uma das mais icônicas e relembradas pelos Estados Unidos, muito por causa da histórica foto dos seis soldados americanos erguendo a bandeira dos Estados Unidos no topo do Monte Suribachi. Emblemática, a foto foi tirada por Joe Rosenthal, venceu o Prêmio Pulitzer, foi reproduzida milhares de vezes nos Estados Unidos e no mundo, virou monumento, selo oficial e serviu como peça principal de marketing para o governo norte-americano conseguir arrecadar dinheiro da sua população com o intuito de continuar financiando a guerra.

No contexto do conflito, Iwo Jima era uma ilha vulcânica japonesa localizada em uma região estratégica do Oceano Pacífico que servia como uma importante base aérea e naval do exército imperial japonês, além de ser o último ponto de resistência antes do arquipélago principal do Japão. Sabendo disso, as forças militares dos Estados Unidos atacaram com mais de 100 mil homens e 500 navios, enquanto o Japão, já sem recursos e sabendo da derrota inevitável, defendeu-se com pouco mais de 20 mil soldados com o intuito de atrasar a invasão americana nas principais ilhas e cidades do país.

Foram estes fatos históricos que Clint Eastwood escolheu trazer para as telas dos cinemas no ano de 2006 de uma forma surpreendente e inovadora. Mas muito mais do que somente contar a história da Batalha de Iwo Jima, Eastwood buscou uma forma de mostrar o conflito de forma crítica e acima de tudo humana.

Nos filmes de guerra é natural estabelecer um ponto de vista que guie moralmente a narrativa e a visão do espectador, que estabeleça os heróis e os vilões, que deixe claro quem está lutando pelo bem e pela justiça e quem está contra tudo isso. Geralmente isso é feito através da escolha dos narradores da história, dos personagens que estamos acompanhando; nós os seguimos e vemos suas batalhas e dramas, nos afeiçoamos a eles; enquanto no outro lado, os inimigos normalmente carecem de rostos e personalidades, são apenas armas que atiram e querem matar os mocinhos, são desumanizados.

Posto isso, o que Eastwood faz para fugir da desumanização presente nos filmes de guerra não é subverter o tradicional modelo dos filmes de guerra — e fazer algo nesse sentido não seria nem um pouco condizente com um diretor com raízes tão clássicas como Clint Eastwood —, mas sim realizar dois filmes sobre a mesma batalha com perspectivas contrárias e lançá-los nos cinemas em um intervalo de dois meses. Um filme mostrando o ponto de vista dos americanos, A Conquista da Honra, e outro o ponto de vista dos japoneses, Cartas de Iwo Jima. Mesmo que cada filme funcione muito bem como uma obra isolada, a verdade é que vistos como dois lados do mesmo acontecimento ambos adquirem novos sentidos que só enriquecem o conjunto.

Em A Conquista da Honra, acompanhamos os combatentes dos Estados Unidos que hastearam a bandeira na ilha, vemos a repercussão da icônica fotografia dentro do país que elevaram os soldados que a hastearam ao posto de heróis de guerra, e vemos como a batalha aconteceu em Iwo Jima pelos olhos deles.

Assim como em seu premiado western Os Imperdoáveis, filme que quebra totalmente o mito do herói pistoleiro do velho-oeste, Eastwood vai partir da fotografia histórica da bandeira americana e de toda propaganda que o governo norte-americano fez em cima dela para desconstruir o mito do herói de guerra e da defesa da pátria como meio glorificador do homem. No filme, acompanhamos a turnê que os três soldados presentes na foto e que sobreviveram à Batalha de Iwo Jima fazem pelos Estados Unidos para arrecadarem verbas da população para financiar os esforços de guerra. É na exploração que o governo e a mídia fazem da imagem dos três soldados — a construção de uma narrativa que fazem em volta deles, tentando torná-los heróis que inspirem a população americana com intuito de obter ainda mais recursos de guerra, ao mesmo tempo que ignoram totalmente o trauma que eles acabaram de viver — que toda desumanidade da guerra é escancarada.

Eastwood revela o desprezo total das grandes instituições americanas pela vida dos soldados e da própria população do país, que são vistos como gados e peças do jogo dos poderosos que mandam milhões de jovens para a morte financiados pelo dinheiro dos pais e parentes deles próprios. Cenas como a que os soldados tentam corrigir a identidade de uma das pessoas que estava na fotografia e são calados pelo governo para não quebrarem a narrativa criada demonstram bem o que importa realmente para as figuras de poder dos Estados Unidos. Mas isso fica ainda mais claro na jornada de Ira Hayes (Adam Beach), um dos três soldados, que ao mesmo tempo que é visto como um herói de guerra sofre um forte preconceito da sociedade por ser um nativo americano e ainda tem que lidar com o estresse pós-traumático da guerra.

A estrutura do filme é bem fragmentada, vamos alternando a todo momento entre a turnê dos soldados e suas fortes lembranças da Batalha de Iwo Jima. Nas cenas de guerra, Eastwood parece tomar muito cuidado com a reconstituição do que realmente aconteceu (e a influência de Steven Spielberg, um dos produtores dos filmes, e seu O Resgate do Soldado Ryan, é fortemente sentida aqui), ele usa constantemente planos gerais da frota americana e dos bombardeios (que duraram três dias ininterruptos) na ilha para mostrar a real dimensão do conflito, algo tão grandioso (foram mais de 500 navios que atacaram uma ilha de apenas 21 km²) que é até difícil de acreditar antes de ver as fotos reais nos créditos finais. Há sempre um realismo e uma crueza que busca mostrar o cenário de guerra não como um lugar onde a grandeza do homem se encontra, mas o contrário. A fotografia escolhe filmar a guerra quase em preto e branco e várias vezes com câmera na mão. O cenário é desolador, a areia é preta como carvão, o céu está sempre nublado, instaurando uma morbidez constante. O filme também não vai amenizar ao mostrar pessoas morrendo ou perdendo membros e órgãos, tudo é explícito e chocante. É o horror da guerra sem romantismo.

A abordagem visual que Eastwood usou para mostrar a guerra em A Conquista da Honra vai ser a mesma de Cartas de Iwo Jima. No segundo filme vamos ter o conflito visto pelo lado dos japoneses. A história vai focar principalmente em dois personagens: o General Kuribayashi (Ken Watanabe), responsável por fazer a estratégia de defesa da ilha — que o filme vai mostrar com calma e detalhes no primeiro ato —, e Saigo (Kazunari Ninomiya), um soldado que foi obrigado a ir para a guerra sem querer. Vamos conhecendo e nos relacionando com esses personagens através das cartas que eles mandam para os familiares e no dia a dia da ilha. No filme que mostrava o ponto de vista dos soldados americanos só víamos os japoneses como sombras e armas que atiravam sem cessar. Eastwood vai focar em quem são essas pessoas que foram inseridas nesse conflito sem muita opção de escolha: vemos um padeiro que só queria ficar junto de sua família, mas teve que ir para a guerra; um nobre campeão olímpico de hipismo que era amigo de grandes astros de Hollywood e um jovem “policial militar” que se recusou a seguir uma ordem cruel do seu superior e foi mandado pro front de batalha por causa disso.

Cartas de Iwo Jima vai falar do orgulho e honra próprios da cultura do Japão, do sentimento de dever com a pátria e com o imperador presentes na sociedade japonesa da época e o peso que os homens do país carregam por causa disso. Se o heroísmo americano vem de uma construção de marketing, o japonês vem de uma tradição: dar a sua vida em nome do país é o maior símbolo de heroísmo.

Um pouco menos ácido do que no filme americano, Eastwood vai questionar qual o valor real do sacrifício na sociedade japonesa, se vale a pena morrer por algo tão abstrato e fútil como o país ou a honra do imperador. O filme, então, vai mostrar o suicídio dos combatentes japoneses – prática comum quando estavam diante da derrota – de maneira crua e direta. Eastwood faz questão de filmar essas cenas pesadíssimas sem nenhum outro sentimento que não seja horror. Dentro da história é nos dois protagonistas que essa tradição tão cara à sociedade japonesa vai ser posta em xeque. Ambos vão rejeitar a morte como algo que eleva a honra e enxergarão o continuar a viver, o amor com a família e o próximo como algo que realmente importa.

A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima são dois autênticos filmes antiguerra e belas obras que pagam tributos às mais de 25 mil vítimas da Batalha de Iwo Jima, obras que nunca caem no erro de glorificar a guerra e a morte como algo libertadoras, mas sim trágicas e terríveis, como deve ser sempre visto. Além de questionar valores e condenar os governos e poderosos pela morte de milhões de pessoas, os dois filmes de Clint Eastwood vão apontar para a vida do ser humano como o valor mais fundamental de todos, algo simples e talvez até batido, mas o fato de ser simples não significa dizer que não seja importante.

A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima estão disponíveis no Globoplay.

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.