Toma teu dente podre, dá cá meu dente são
Ayrton Maciel*
Em 22.11.2020
Vivemos tempos de negação. Os dias contemporâneos enfrentam o retorno dos tempos medievais: negação da ciência, misticismo explicando fenômenos naturais, o obscurantismo – para impedir o conhecimento -, a nova Idade da Fé para regular as tradições e os costumes. E cristãos e muçulmanos – característica nunca finda – resolvendo suas divergências internas e entre si pela espada. Não sem enfrentarem grandes obstáculos – religiosos, em grande parte -, o conhecimento e a ciência avançaram e continuam avançando. Porém, o obscurantismo acompanha o tempo – apartado em séculos – e, quando surgem chances históricas, dissemina-se em campos férteis. O negacionismo é uma de suas mais fortes raízes.
Este início de século 21 está marcado pela negação. No mundo, governantes de grandes e pequenas nações, países desenvolvidos e em desenvolvimento, a pretexto de mudanças comportamentais, morais e nacionalistas – e do suposto fracasso econômico da globalização -, conseguiram alcançar o poder pela forma democrática e legítima do voto. Em todos os casos, os argumentos de risco às liberdades e aos direitos fundamentais não sensibilizaram a maioria para impedir esta Era de perdas, danos e conflitos. Alcançaram o poder governantes da negação: Donald Trump (EUA), Jair Bolsonaro (Brasil), Vktor Orbán (Hungria), Andrzej Duda (Polônia), eles governantes ultraconservadores com governos de princípios negacionistas e fundamentalistas.
Outros, até de ideologia oposta, em tese, fortaleceram-se: Vladimir Putin, na Rússia, Nícolas Maduro, na Venezuela. Todos, em comum, autocratas. Creem no que interpretam e só aceitam o que é de sua vontade. Intolerantes à contestação e a opositores, são permanentes fontes de força bruta. Como governantes, não estão sós. Há milhões que os fortalecem. Para alimentar esses milhões, nutrição da mente e da alma, há o desconhecimento, a alienação, a insensibilidade social, a individualidade extremada, a posse material como bem sagrado. Por isso, negam, negam tudo que lhes parece diverso, antagônico e contraditório ao que pensam.
Nesta Era de Negação, mais um episódio – entre os que se sucedem semanalmente – reacendeu o caráter negacionista. O fato está diante dos olhos e os registros são memória: o racismo é história. A negação é prática, é preservação, é perpetuação é cultura branca. O assassinato do negro João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, numa loja Carrefour de Porto Alegre – por seguranças brancos, um deles policial militar -, desmonta qualquer negativa. A fúria de um aplicando socos em série e do outro executando uma gravata é de tamanha animalidade que só apenas o que os dois pensam explica: é racismo, embora possam negar. Se a vítima fosse um branco, sofreria tamanha violência? A investigação pode revelar a motivação subjetiva, mas não trará João Alberto de volta.
Negacionistas em tempos contemporâneos soam com incredulidade aos ouvidos dos que se opõem. A história é conhecida, a memória está viva, as práticas são testemunhadas e as imagens da morte de João Alberto são incontestáveis. Negar a motivação sob o argumento de que o fato está sendo apurado é uma desculpa, no entanto, negar a existência do racismo na sociedade por uma questão ideológica é não condenar a prática, uma herança da cultura colonial da qual o Brasil não se libertou. É o exemplo do vice-presidente da República, Hamilton Mourão.
Um general de carreira que nega que no Brasil exista racismo. Mourão nega o que está claro, uma herança com a qual todos convivem. Bolsonaro é um negacionista. Mourão é um negacionista. Ambos, militares. O que se estuda nas academias militares, em tese, mais do que a formação militar, no mínimo é a história. Distorcer a história pode ser um fator de influência na formação, mas cada ser humano é dotado de capacidade de isenção. Para Mourão, porém, não há racismo no Brasil (ele só existe nos EUA, afirma), o que há por aqui é uma grande pobreza. Não por coincidência – e sim pela formação da riqueza do país – é na pobreza onde se encontra a grande maioria dos 53% de negros que compõem a população nacional. Não é a pobreza que alimenta o racismo, é o inverso.
Existe racismo, General. Quantos negros chegaram a generais, almirantes e brigadeiros? Quantos a reitores? A governadores? A CEOs? Não é uma questão só de pobreza. Esta é um fator de proliferação. O racismo, todavia, é latente. É branco, do rico e do pobre. Oculto, mas existe. Negar só o alimenta. Negar, desconhecer (propositalmente) ou querer esconder é um ato ideológico. Fazer que não vê, não sente e não cheira o que é imaterial, e o que não o atinge individualmente, é uma posição de grupo político.
Há uma lenda que todos conhecem na infância. Diz que se a criança jogar o dente de leite no telhado e recitar “Mourão, Mourão, toma seu dente podre e dá cá meu dente são”, um novo dente nascerá rápido e bonito. Não é o caso com a ideologia: o dente apodrece e não cai, se o dono assim não quer, se o dono assim nega.
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*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991. Escreve aos domingos.
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De excelente qualidade analítica!! Nota 10!!
Obrigado, mestre Fernando! Seu comentário me honra. Saudações fraternas.