Cafés da manhã… inesquecíveis!
Mirtes Cordeiro*
Em 23.11.2020
Na semana passada recebi uma mensagem de uma grande amiga que mora no Chile. Numa foto, uma xícara de café e uma tigela com pães de queijo e uma frase: “É bom sonhar… algum dia.” O pão de queijo, outrora típico do acompanhamento do café dos mineiros, hoje pode ser encontrado no país inteiro.
Para ela, como para nós brasileiros, tomar café é um rito. É a hora do encontro, das conversas, das notícias boas ou ruins, do pensar… às vezes é bom tomar um café para aclarar as ideias, colocar no papel o que pensa, agora no computador.
E os cafés da manhã? Aproveito para fazer uma passagem pelo tempo da minha vida através dos cafés da manhã por onde vivi e trabalhei.
Quando criança, o café da manhã da minha casa era preparado por minha mãe, uma mulher sertaneja da região dos Inhamuns, no Ceará. O café preto, sem leite, coado num bule de ágata azul, feito num fogão à lenha, era acompanhado de tapioca, cuscuz e carne de bode ou de porco grelhada em fogo de brasa do fogão. Meu pai, por ser um cidadão urbano, logo cedo ia à padaria buscar o pão, que era acrescentado à mesa, mas sem muita exuberância.
A primeira alimentação deveria ser forte para dar a sustância, o vigor, para quem trabalha ou vai para a escola.
Naquela época o café era comprado em grãos, na feira e do próprio agricultor. Era torrado em casa num amplo vaso de barro produzido por mulheres que fabricavam utensílios domésticos artesanalmente. Após torrado era pilado num pilão feito de uma tora da madeira.
Num canto da mesa, um pote com nata, subproduto da coalhada, para passar na tapioca e uma tigela com o leite espumante saído do peito da vaca, denominado de leite mugido, para os que apreciavam.
Imaginem! Na casa do meu tio, em momentos de férias, bem no meio do sertão, onde só os juazeiros permanecem verdes em tempos de seca, o café da manhã era mais apreciável porque quase tudo era produzido na roça. O café era adoçado com rapadura raspada com uma faca bem amolada, resultando num pó quase marrom, numa tábua onde também era colocado o queijo de cabra de cheiro bem forte. Exigia pelo menos uns dois dias de experiência para se acostumar com a delícia do alimento. Em abundância, a farofa de toucinho com ovos. Beiju – o antecessor da tapioca – nunca faltava. Num canto da mesa, um pote com nata, subproduto da coalhada, para passar na tapioca e uma tigela com o leite espumante saído do peito da vaca, denominado de leite mugido, para os que apreciavam. Diziam os mais velhos que curava doenças se tomado em jejum. Hoje sabemos que o leite “in natura” pode conter doenças.
Meu tio não era fazendeiro. Apenas um pequeno produtor rural que nas horas vagas construía açudes, profissão herdada do meu avô.
Na casa do tio, os utensílios domésticos também eram do barro do local, transformado em cerâmica queimada em fornos rústicos. Por isso, na mesa, eram usados pratos, xícaras tigelas e alguidares todos de barro da terra.
No início eu achava esquisito e ficava lembrando das xícaras brancas chamadas de louça, adquiridas na cidade. Modernas e caras, fora do alcance das famílias da roça. Só depois consegui entender que os dois tipos de louça são produzidas pelo mesmo processo e o que diferencia são a tecnologia para o aquecimento do forno e as espécies de esmalte utilizadas.
Então, tomar café da manhã no Nordeste é uma aventura sem fim… até pouco tempo, nada de frutas, com exceção de bananas, laranjas, cajus, pinhas, ou seja, as frutas de época, mas sem muita importância para aquele momento.
Em Fortaleza, já trabalhando no ESPLAR, num prédio situado ao lado da Praça dos Leões, onde ficava também a Assembleia Legislativa, havia o Mercado Central, com os mais variados botecos e lanchonetes, onde além de se tomar café da manhã, também se almoçava podendo escolher em cardápios regionais o que havia de melhor da alimentação saudável e concebida pela história dos povos cearenses na sua miscigenação.
Era comum antes de chegar ao trabalho tomar o café com pão e manteiga na lanchonete, mas iniciando pelo caldo de carne moída ou pela canja de frango. Alguns até comiam o pirão de ovo, também conhecido como mingau de cachorro, que aumenta a imunidade.
Já em Pernambuco, morando na Rua da Hora, 1979/1981, era comum tomarmos o café num boteco da esquina da João de Barros com a Conselheiro Portela, e nada melhor que o café com pão e ovos assados com manteiga na chapa. Zé Roberto, que era paulista, não desprezava o leite no café, a qualquer hora.
Café da manhã pelas estradas do Nordeste é a oportunidade de vários experimentos de bom paladar. Cuscuz com bode assado no espeto, carne de sol frita… paçoca de carne com banana. Alguém já experimentou? É uma maravilha.
Nada comparável ao sabor da carne de bode ou carneiro de Uauá, no sertão da Bahia. Junte a isso o pão da única padaria de Uauá na década de 1990. O sertão da Bahia ainda é uma região em que os rebanhos de cabra se alimentam de faveleiros, o que torna a carne de um valor único. Aprendi com o IRPAA a me mover melhor, compreendendo que no semiárido o importante é conhecer as riquezas que o bioma caatinga produz e respeitar a convivência entre seres vivos e clima.
Ainda lembro das manhãs na Pousada de Curaçá, uma varanda com uma grande mesa de frente para aquela imensa faixa de água azul que é o rio São Francisco, separado de nós por um pequeno trecho da caatinga acinzentada. Devia ser aquela a visão do paraíso… saborear o café da manhã naquele fim de mundo ainda é uma aventura indescritível, pela qualidade dos alimentos, pela forma como se mantém a tradição do cotidiano dos caatingueiros, com suas vidas difíceis e seus sabores variados. Quem já experimentou tomar um suco de umbu após um café da manhã?
Na praia de Pipa, uma das mais lindas do litoral do Rio Grande do Norte, era difícil controlar a gula naquela pousada que só servia café da manhã com suas maluquices de bolos variados, empadas, tapiocas, batata doce e presuntos de vários tipos. Bem moderna, mas de acordo com as vontades e curiosidades dos turistas.
Na minha casa nunca teve a presença de garrafa térmica. O café sempre foi coado num bule e daí direto para a xícara, a qualquer hora do dia, até mesmo quando chegávamos pela madrugada, após extensas reuniões.
Bem tem razão a minha amiga; é bom sonhar com coisas boas da vida, por exemplo, um bom café, uma boa amizade.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
O texto de Mirtes nos faz retomar os momentos bons da vida, as boas conversas entre os amigos regadas a um bom café para acalentar as discussões acaloradas e aquelas conversas que apaziguam o coração.
Ficar sentada num final de tarde com os amigos jogando conversa fora, é o que preciso no momento.
Uma crônica, eivada de uma linguagem e discurso leves que facilita a fluidez da leitura.
Parabéns Mirtes por nos presentear com esse texto.
Grata Edilene! Através do texto o afeto por todos os amigos e amigas, companheiros de tantas lutas e cafés saboreados por esse mundo a fora. Bjs
Este nos remete a nossa infância em qualquer lugar do Nordeste brasileiro. É um texto de leveza que só a sabedoria da escritora poderia traduzir tão bem a importância de se tomar um café com amigos e conversar sobre o nosso cotidiano ,e ainda me fez lembrar dos cafés feito por nossa amiga Glória. Parabéns pela “buniteza “do texto Mirtes.