Maradona: um gênio que tabelou até com Deus
Otávio Toscano*
Em 26.11.2020
Ele nunca chegou a jogar bola como Pelé, nunca teve a magia lúdica de Garrincha. Ao meu ver, no seu patamar, um seleto universo de craques, caso dos Ronaldos – o Fenômeno e o Gaúcho -, Beckenbauer, Zico, Sócrates, Platini, Zidane, Van Basten. Mas, acima desses rivais que pareciam imbatíveis, foi especial. Sabia como poucos se fazer presente. Em 1990, a Argentina eliminou o Brasil na Copa da Itália. No gol dos Hermanos, não deu somente um passe. Com um toque destruiu a marcação canarinha e deixou Caniggia matar a pau. Justo no único jogo que o Brasil decidiu jogar bola naquele Mundial, tinha Maradona do outro lado do campo. Ao final, com o time inteiro se abraçando no meio do campo, ele segue sozinho e se abraça à bandeira de escanteio, de joelhos, agradecendo a Deus. Advinha pra onde as câmeras se voltaram. O cara era um show. Pouco provável que surja outro parecido no futebol. Cristiano Ronaldo até tenta, mas passa longe. Pra ser Maradona tem que nascer Maradona, crescer Maradona e, agora, morrer Maradona.
Com sua partida, segue também uma parcela significativa da alegria do futebol. Tempo nos quais o craque era craque e fazia miséria com a bola, sem levar cartão amarelo porque humilhou o adversário. Tempo em que se podia comemorar o gol marcado tirando a camisa em tom de desabafo, sem ser punido por isso. Tempo em que a boleirada até se pegava dentro do gramado, a tapa cobria, mas no final, todos os torcedores podiam ir pra casa em paz, sem ciladas, sem criminosos organizados dispostos a espancar seres humanos apenas porque torcem por outro clube que não o deles. Maradona deu exemplos vários de que futebol é um esporte, é diversão. Um circo no qual nunca escolheu posição. Foi domador, foi leão, foi palhaço, foi malabarista. Foi tudo aquilo que se espera do picadeiro.
Baixinho, entroncado, um gigante. Um monstro com a bola nos pés e com um microfone próximo da boca. Em apenas um jogo de futebol, lavou a alma de uma nação humilhada por um confronto imbecil. A ditadura militar argentina tentou resgatar o patriotismo da nação ao declarar guerra contra a Inglaterra, na Guerra das Malvinas (abril a junho de 1982). O massacre foi inevitável. No entanto, por mais tiros e bombas que tivessem sido disparados no combate absolutamente desigual, em apenas dois lances na Copa de 1986, Maradona calou os ingleses e encheu sua pátria de orgulho. Em uma jogada, tabelou com Deus e mandou a bola pras redes. “Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios”[, disse, ao final da partida. No outro, como um deus, saiu empurrando a bola desde seu campo, atropelando um a um seus adversários, e fez um dos gols mais bonitos da história das copas. Um momento ímpar do futebol, que mostrou toda a força do esporte e da paixão das pessoas pelas camisas que seus ídolos vestem.
Maradona foi além em tudo. Quando um argentino é amado até no Brasil, onde se costuma ver aqueles vizinhos como adversários inconciliáveis, é porque esse cara é diferente. É especial. Agora, só restarão os vídeos e as comparações. Mas não dá pra comparar. Maradona é Maradona, Pelé é Pelé. Enfim, cada qual com seu cada qual. Pra mim, Pelé segue intocável. Nada supera seu talento. Mas, experimenta dizer isso em Buenos Aires hoje…
*Otávio Toscano é jornalista.