JOVENS AUTORES – Noite de insônia

Por

Guilherme Vieira*

Em 04.12.2020

Preciso ser franco e assumir que estou escrevendo esse texto no meio da madrugada, após horas e horas conversando com fantasmas, delírios e multidões que moram em minha cabeça. Minha única saída para uma noite de sono tolerável é a produção desse texto.

Tal qual Danny Torrance, necessito por esses tormentos em caixinhas e os colocar em sono profundo, deixando-os em suspenso, até que um dia se libertem e eu precise escrever sobre eles mais uma vez, novamente, incansavelmente. Venho procrastinando essa necessidade por muito tempo, devido a um impasse pessoal que não me permite escrever em paz.

De uma certa forma, sempre me perguntei sobre a relevância da arte que eu produzia, assim como sobre a originalidade dela. Temos o direito de sonhar, pensar e produzir, mas, dentro dessa liberdade, acho importante nos perguntarmos se a expressão ali presente é válida.

Sejamos sinceros, dentro de um mundo globalizado e com cada vez mais acesso à cultura, existe uma limitação imposta sobre o que é novo e possivelmente interessante. Quanto mais eu leio livros ou escuto músicas, mais eu percebo que os temas que eu quero escrever já foram escritos por outras pessoas, talvez décadas ou séculos atrás. Obras que, mesmo sem eu nunca as ter conhecido, só em ler os primeiros versos, ou absorver os primeiros capítulos, vejo que o que pensei ou escrevi não fala sobre algo meu, mas sim, algo que já foi de alguém, ou de todos. Dessa forma, não consigo parar de me questionar sobre o motivo pelo qual eu, de fato, me seja. Lógico, se formos falar em termos empíricos e concretos, não existe outro de mesmo nome, que more no mesmo endereço, tenha o mesmo cabelo, a mesma tatuagem de uma pena no braço direito e as mesmas cicatrizes no braço esquerdo. Sim, impaciente de plantão, tenho consciência de que sou eu mesmo, não será hoje que irás me internar. Entretanto, pensar assim é muito conveniente e pouco reflexivo. Certo, sei, ou ao menos acho que sei, que habito o corpo que está digitando essas palavras, porém será que essas palavras que digito são minhas?

A linguagem é algo anterior a nós. Podemos e devemos modificá-la, mas nós precisamos nos adequar a ela. Ao mesmo tempo em que ela nos dá o poder de nos expressar e as ferramentas para o desenvolvimento cognitivo( a maior prova é que eu estou podendo escrever esse texto que fala sobre tudo, mas também sobre nada), nós assinamos, inconscientemente, um contrato que nos faz ter que jogar nas regras que foram estabelecidas antes de nós e das quais não fizemos parte da construção.

Só posso escrever o que escrevo, pois em algum momento o Latim foi assimilado pelos romanos e, com as suas conquistas, modificado e transformado no português na península Ibérica, e depois enfiado goela abaixo nas terras brasileiras, nosso país. Ao falar e usar símbolos que foram criados antes de mim, estou perpetuando e me encaixando em uma linguagem que não é minha, mas eu a alugo para que tenha identidade e voz.

Ainda que nós, brasileiros, tivéssemos criado nossos próprios símbolos, sons e tivéssemos uma cultura e arquétipos construídos só para nós, a liberdade para a criação de um ser individual é impossibilitada no momento em que esse tem de conviver com os seus semelhantes. Sou humano pois outros já foram, sou branco pois outros já foram, sou escritor pois outros já foram. Meu nome, símbolo que usam para formar a minha imagem, não foi escolhido por mim, mas ainda assim me caracteriza. Construímos nossa existência a partir das coisas que outras pessoas, de gerações passadas, fizeram para tentar perpetuar sua visita ao planeta. Não existe escapatória para isso.

Posso, sim, pensar que sou um ser único e que a mistura de experiências e aluguéis intelectuais que possuo é inteiramente autêntica, mas realmente acredito que isso é uma ilusão. Existem linhas de pensamento que dizem que o todo é mais do que a soma de suas partes, porém não vou muito por esse caminho. Talvez pelo meu cansaço com o narcisismo pós-moderno, ou pelos fios do niilismo que tento, sem sucesso, deixar de lado. Vejo essa presunção da autenticidade pura com olhos cínicos. É a luta de todo sujeito, a partir do momento em que ele nasce, descobrir quais pedaços do mundo ele foi, sem saber, engolindo e digerindo para se nutrir, dividindo espaço com seus genes.

Crescemos carregando a identidade da nossa família, da nossa cultura, das nossas influências e, depois, ingerimos o resultado da mistura que aconteceu nos outros indivíduos que vieram por caminhos diferentes.

Nossa luta não é pela busca de identidade, mas pela identificação do que compõe ela. O material sempre esteve lá, talvez ofuscado por repressões e recalques, mas o que engolimos nunca sumiu. Nossa natureza antropofágica nasce conosco, ao bebermos o leite da nossa mãe e sentir dela o prazer do carinho. Crescemos carregando a identidade da nossa família, da nossa cultura, das nossas influências e, depois, ingerimos o resultado da mistura que aconteceu nos outros indivíduos que vieram por caminhos diferentes.

Não somos nós por seguirmos uma ficha de identidade que foi designada especificamente para quem resultamos ser, mas por termos ingerido as misturas de outras pessoas que passaram pelo mesmo processo que um dia passamos e ainda estamos passando.

Se você ainda está aqui, espero que isso tenha saído ao menos com algum sentido e conexão. Sendo mais direto, muitas coisas me levam a pensar que, por mais que os versos continuem aparecendo na minha cabeça e os raciocínios venham a minha mente, muito provavelmente eles já vieram em outras mentes e em outros tempos, embora exista uma boa chance de que não tenham vindo da mesma forma.

Talvez o prévio autor tenha usado um quarteto, ao invés de um verso livre; talvez ele tenha escrito usando sinônimos, mas não as mesmas palavras; talvez ele tenha usado metáforas diferentes, mas formado a mesma imagem.

Existe um peso muito grande que sinto ultimamente; peso que muitas vezes me faz descartar um poema ou texto que escrevo. Você percebe? Se o assunto sobre o qual escrevo não é particular a mim, se a linguagem que uso não é minha, se as ideias que tenho não vieram de mim, então a única saída que tenho é pegar tudo isso que não é meu e fazer disso um plágio autêntico bem feito, aí que mora o problema.

Para que o meu texto valha a pena ser lido, ele depende que eu seja, ao menos, tão interessante quanto os outros que escreveram sobre as mesmas coisas que eu penso nesse momento. Meu texto não vai ser válido por si só, mas por ser bom em comparação aos outros que existem ao mesmo tempo e antes dele, as vezes até depois. Não existe espaço para ele ser de maneira autêntica, e isso me cansa.

Talvez até exista espaço para autenticidade, mas somente nos olhos de um leitor sem muita bagagem, e não é certo escrever algo pensando que quem vai ler nunca experienciou nada igual, passa até pelo território da presunção.

No final das contas, tudo isso se resume ao medo. Medo de ser medíocre, medo de ser esquecido, medo de não ser único. Fui envenenado pelo mesmo veneno que tanto reclamo nessa juventude da qual faço parte, e isso me aterroriza. Ser jovem me dá pesadelos e faz com que meu suor seja mais frio do que a mesosfera. Carrego em mim o legado daqueles que foram e a expectativa do que vou vir a ser. Falhar com esse potencial significa sumir da existência sem ter tido um pingo de relevância.

Confesso que esse medo me imobiliza e me faz não querer produzir, mas nessa madrugada, e especialmente nessa madrugada, estou me permitindo a possibilidade de ser um qualquer, vagando pela terra em busca do seu lugar, sem ao menos saber se quer o que diz querer e se fala o que quer dizer. Sou jovem da minha maneira, ainda que essa maneira não seja minha.

É um tanto enlouquecedor e triste, devo dizer, mas também nem tudo que saí disso é maléfico. A linguagem interage com nossa mistura e assim ela se modifica dentro de nós. Embora usemos símbolos que não são nossos, esse aluguel nos permite ressignificar esse telefone-sem-fio que veio do outro. Se fossemos todos autênticos, não poderíamos nos comunicar, nem nos relacionar. Sacrifico meu valor único no mundo, para que possa ser humano, jovem, brasileiro, nordestino, pernambucano, recifense e escritor. Se vale a pena, eu ainda não sei, mas só sei que o mundo ainda é o mundo e a vida sempre vai ser esse acidente traumático do qual nunca pedimos para participar, mas ainda não queremos sair.

Voltarei quando o medo não mais me incomodar, mas retornai ao paraíso onírico quando já não puder mais aguentar.

Espero que você tenha dormido bem, pois agora é a minha vez.

*Guilherme Vieira, 21 anos, é estudante do 7º período de Psicologia pela Universidade Católica de Pernambuco.

NOTA DO EDITOR

Com esta crônica assinada por Guilherme Vieira, de apenas 21 anos de idade, o blog Falou e Disse dá sequência à coluna JOVENS AUTORES. O espaço é destinado a estimular e encorajar adolescentes e jovens a compartilharem as suas ideias e os seus pontos de vista de maneira mais ampla, buscando publicar crônicas e artigos sobre os mais variados temas.

A crônica Noite de insônia foi editada respeitando-se a íntegra do texto recebido.

Textos para publicação no espaço JOVENS AUTORES devem ser encaminhados para o email ambrosiosantos@gmail.com