Uma carta a quem não mais pode ler

Por

Jénerson Alves*

Em 11.12.2020

Sempre gostei de comprar livro em sebo. As páginas encardidas parecem contar uma história à parte da que está impressa. Dedicatórias, textos grifados, pequenas anotações montam uma espécie de narrativa paralela. Existe a história da obra, mas também a história do livro. A quem teria pertencido tal produto? Quem o possuía o recebera como presente? De quem? Ou comprara-o? São indagações que todo livro usado carrega em si. Contudo, nenhuma experiência me foi mais marcante do que esta: há alguns anos, comprei um opúsculo surrado que estava em promoção no único sebo ainda em funcionamento em minha cidade. Talvez por descuido, entre as páginas do livreto, havia uma mensagem escrita a mão em uma folha de caderno corroída pelo tempo. Uma mensagem redigida com letras cursivas trêmulas, que comecei a ler despretensiosamente e concluí aos prantos. Não possuo mais nem o livro nem a folha. Porém, reli tantas vezes a mensagem que a tenho decorada e vou reproduzi-la aqui:

Caruaru-PE, 20 de setembro de 1994.

 Minha doce A. S.,

Escrevo-te estas mal traçadas linhas como quem perdeu o senso. Mal tenho forças para segurar a caneta. Não sei quem está mais débil; se meu corpo ou minh’alma. Gostaria apenas de pedir-te perdão. E talvez não me perdoes, mas tens razão. Sempre tiveste. Eu é que não via. Apenas agora, com a visão turva e os olhos cansados, é que enxergo a verdade que quiseras me revelar…

Por falar nestes meus olhos, só agora percebo o quanto fui negligente. Deixei de olhar, com suficiente frequência, para a imagem mais bela e importante da minha vida: teu rosto. Como eu deveria libertar-me do relógio das preocupações para me ocupar em decifrar cada mistério envolvido no mapa dos teus olhos!

Eu deveria ter prestado mais atenção às tuas mãos… tão pequeninas, mas capazes de tão grandiosas obras! Diariamente preparavas para mim uma porção de amor, a qual tantas vezes desatentei… Eu procurava em uma rotina fatigante o sentido para a vida, sem ver que este tesouro estava em casa. Fui tolo, igual a Ivan Ilitch. E tão vazio quanto ele.

Da malfadada poltrona de um escritório empoeirado, deixei de ver a vida que corria a passos largos e fazia nossos filhos crescerem. Aos poucos, tornei-me um estranho para eles, ou somente mais um objeto decorativo em nossa casa. Hoje eles estão geograficamente distantes, mas faz muito tempo que nossos corações já não se encontravam.

Sei que meu reconhecimento é tardio. Certamente de onde estás não podes mais ler o que te escrevo. Mesmo assim, suplico-te perdão. Meus olhos, que deixaram de ver o que há de mais importante na vida durante todo este tempo, hoje enxergaram que já não tenho mais tempo. O exame médico comprovou o óbvio: ‘quia pulvis es et in pulverem reverteris’.

Quem sabe o favor do Senhor do Universo também me alcance, e à sombra da Árvore da Vida eu possa ver-te. Quem sabe, quando todo o pó se dissipar, o Amor ainda permaneça e mantenha vivo o que realmente importa.

Escrevo-te com dor e saudade, mas também com uma fagulha de esperança.

 Um beijo,

J. O.

*Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.

Foto destaque: Michael Jarmoluck/Pixabay