SALA DE CINEMA – “Mank” e a fabricação de Hollywood
Pedro H. Azevedo*
Em 13.12.2020
Uma das apostas da Netflix para a premiação do Oscar, Mank conta a história real do bêbado e ácido roteirista Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman) durante o processo de escrita do roteiro do lendário Cidadão Kane, do, na época, prodígio de 25 anos Orson Welles. Isolado em um rancho e preso em uma cama por conta de uma perna quebrada, Mank relembra momentos vividos por ele no mundo dos poderosos estúdios de Hollywood durante a década de 30, onde convivia com produtores, estrelas de cinema, roteiristas e figurões da Califórnia. O filme então vai mostrar os paralelos entre as vivências do roteirista e o roteiro que ele escreveu para Cidadão Kane, revelando assim o impacto que Hollywood causou no filme e vice-versa.
O filme é dirigido por David Fincher e roteirizado pelo seu pai, Jack Fincher. Assim como aconteceu com Scorsese e seu O Irlandês, Mank é um projeto que David Fincher vinha procurando realizar há bastante tempo, mas que não conseguia ser aprovado nos grandes estúdios, muito por conta do filme ser em preto e branco com um tema muito específico como “os bastidores” de Cidadão Kane, até que a Netflix aceitou dar recursos e liberdade criativa para o diretor. O projeto, inclusive, já estava nas mãos de Fincher por bastante tempo. Enquanto Scorsese levou pouco mais de dez anos para conseguir produzir O Irlandês, Fincher levou mais de duas décadas, já que ele estava desde o fim dos anos 90 com o roteiro do seu pai, falecido em 2003, em mãos.
Já no primeiro minuto do filme, com os créditos entrando por cima de um céu com nuvens enquanto ouvimos uma trilha típica de filmes Noir, fica claro, pelo menos inicialmente, a busca de Fincher por uma emulação estética da Hollywood do período em que o filme se passa, e sabendo que o filme trata justamente de um filme tão icônico e importante para a história do cinema, acaba sendo inevitável não compará-lo especificamente com o de Welles.
Nesse sentido, a direção de Fincher vai se aproximar da de Welles muito mais como um pastiche explícito e livre do que por uma tentativa de aproveitar com fidelidade a mise en scène de Cidadão Kane. Fincher parece querer que Mank seja um filme que remeta a Cidadão Kane e que ao mesmo tempo possua as marcas estilísticas dele próprio. Assim, se por um lado Mank abusa de enquadramentos fortes e icônicos, faz um trabalho de luz e sombra marcante que ressalta a fotografia em preto e branco, utiliza elementos do cinema Noir e explora em várias cenas a profundidade de campo, esta última uma das duas principais e revolucionárias técnicas que Cidadão Kane trouxe à luz. Por outro lado ele rejeita o plano sequência, a outra grande técnica explorada em Cidadão Kane, decupando as cenas em vários planos de forma meticulosa e precisa, uma das marcas registradas de Fincher, e toma uma decisão radical e em um primeiro momento até mesmo contra intuitiva: ele faz questão de evidenciar o aspecto digital da fotografia, deixando a imagem sem textura e “limpinha” demais. Inclusive, as inserções de repetidas “falhas” na imagem, como costumava acontecer em filmes gravados em película, evidenciam muito mais uma falsidade do que uma possível tentativa de simular a película no digital.
É até possível interpretar esse aspecto falso da imagem como uma tentativa falha de se aproximar de Cidadão Kane, mas acredito que enxergar dessa forma seria subestimar demasiadamente um diretor tão consciente e formalista como Fincher. Principalmente porque muito mais do que um filme tributo que tenta recriar a Hollywood dos anos 30 ou o estilo estético de Orson Welles, o filme se preocupa em expor algo ainda maior: o poder do cinema como propagador de narrativas.
Com isso, o filme denuncia a utilização propagandística que Hollywood sofreu e que hoje, com a proliferação dos meios de comunicação e informação e o florescimento da cultura de massas, é ainda mais presente em várias esferas da sociedade.
Durante certo momento da história, acompanhamos as eleições da Califórnia e a influência dos interesses políticos dos magnatas dos EUA dentro da indústria cinematográfica, o que tem como consequência a utilização de Hollywood como criadora e propagadora de narrativas específicas que não tem necessariamente compromisso com a realidade, mas que contribuem para a manutenção do poder de uma elite temerosa em perder seus privilégios. Então, ao se afastar de uma abordagem mais fiel do cinema da época do filme e evidenciar uma artificialidade do que estamos vendo, Fincher livra seu filme de qualquer pretensão de fato (inclusive, o filme apresenta alguns supostos fatos históricos na relação entre Welles e Mankiewicz que são amplamente contestados por estudiosos da história do cinema). É como se ele dissesse que o que vemos em Hollywood são só narrativas falsas e perigosas. Algo que nos anos 30 ainda não era tão forte, mas que na segunda Guerra Mundial e na guerra fria se tornou explícito com os filmes de propaganda de guerra, os anticomunistas e a entrada do marcathismo dentro da indústria durante a guerra fria. Com isso, o filme denuncia a utilização propagandística que Hollywood sofreu e que hoje, com a proliferação dos meios de comunicação e informação e o florescimento da cultura de massas, é ainda mais presente em várias esferas da sociedade.
Isso tudo funciona muito bem no filme. Pena que ele possui grandes problemas, sendo os mais gritantes, ironicamente, no seu roteiro.
Apesar de repleto de ideias boas, o roteiro sofre bastante ao não conseguir explorar e direcionar o seu foco para algo específico; tudo é muito vago e disperso. Muitas vezes a impressão que dá é que o filme só seja capaz de funcionar bem para quem já está por dentro do contexto histórico do filme, já que ele não tenta facilitar a narrativa. Por causa disso os personagens se tornam bem inacessíveis para o espectador. É difícil de entender bem as motivações ou o drama dos personagens, incluindo o protagonista, o que acaba deixando o filme dramaticamente à deriva.
Mank vai bem ao falar da indústria de Hollywood e de como as relações de poder se dão nos bastidores, a luta entre a arte e os interesses econômicos e políticos. A direção de Fincher brilha ao evidenciar os artifícios que sustentam a indústria do cinema dos EUA de maneira cínica e provocadora, características presentes no protagonista Mankiewicz, mas não consegue nos aproximar o suficiente dos personagens a ponto de nos importarmos de verdade com seus destinos e dramas.
*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.