Perfilamento racial: ONU discute recorrência de casos e desafios para combater o problema

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ONU News

Em 16.12.2020

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos realizou dois encontros virtuais sobre o impacto do perfilamento racial no acesso à justiça no Brasil. Na ocasião, foi lançada uma publicação que inova ao trazer a definição de perfilamento racial: processo pelo qual as forças policiais fazem uso de generalizações fundadas na raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade ao invés de evidências objetivas ou o comportamento de um indivíduo, para sujeitar pessoas a batidas policiais e outros procedimentos.

“Em 2014, o meu filho Johnatha de Oliveira Lima, aos 19 anos, foi assassinado por um policial da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) de Manguinhos com um tiro nas costas. Desde então, eu comecei a ver e entender que eu não era a única. Quando eu saio nessa luta por verdade, por memória e por justiça, todas as mulheres que eu encontro no caminho são mães negras, que tiveram seus filhos negros e favelados assassinados pelo mesmo motivo que o meu”.

O relato foi feito por Ana Paula Oliveira, do grupo Mães de Manguinhos, no primeiro de dois encontros virtuais sobre o impacto do perfilamento racial no acesso à justiça no Brasil. Os encontros foram realizados pela ONU sob a liderança do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), nos dias 1 e 4 de dezembro. “Está mais do que provado que o racismo existe, que ele nos afeta diretamente e que nossos filhos são os alvos,” desabafou Ana Paula.

O evento é parte de uma série de reuniões organizadas pelo Grupo Temático de Gênero, Raça e Etnia da ONU Brasil, com o objetivo de realizar um balanço dos cinco primeiros anos da Década Internacional de Afrodescendentes. Com ênfase no eixo “Justiça” do Programa de Atividades da Década e no perfilamento racial, a reunião foi dividida em dois momentos. No dia 1º de dezembro, o debate foi sobre as consequências do perfilamento racial, incluindo seu impacto no assassinato e encarceramento de pessoas negras, bem como os desafios trazidos pela pandemia de COVID-19. No dia 4, o grupo discutiu os desafios para eliminar o perfilamento racial, iniciativas em curso e oportunidades de apoio das Nações Unidas.

No encontro, a ONU Direitos Humanos lançou a versão em português da publicação “Prevenindo e Combatendo o Perfilamento Racial de Pessoas Afrodescendentes: Boas Práticas e Desafios”.  A publicação inova ao trazer uma definição do que é o perfilamento racial, apresenta os documentos relevantes no tema e destaca as boas práticas já em curso no mundo que podem ser replicadas no combate ao racismo e à discriminação racial.

“O termo “perfilamento racial” se refere ao processo pelo qual as forças policiais fazem uso de generalizações fundadas na raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade ao invés de evidências objetivas ou o comportamento de um indivíduo, para sujeitar pessoas a batidas policiais, revistas minuciosas, verificações e reverificações de identidade e investigações, ou para proferir um julgamento sobre o envolvimento de um indivíduo em uma atividade criminosa. O perfilamento racial resulta diretamente na tomada de decisões discriminatórias. Há exemplos de agências de aplicação da lei que visam as pessoas afrodescendentes são frequentes em diferentes países.” 

Prevenindo e Combatendo o Perfilamento Racial de Pessoas Afrodescendentes: Boas Práticas e Desafios

O guia de prevenção e combate ao perfilamento racial de pessoas afrodescendentes, lançado pela ONU em português Foto | Reprodução/ACNUDH

Na reunião, o especialista Pastor Murillo Martínez, ex-membro do Comitê para Eliminação da Discriminação Racial (CERD) e relator à época da Recomendação Geral n. 36 sobre perfilamento racial, apresentou os dispositivos da Convenção que proíbem o perfilamento racial e exigem que o estado adote medidas para prevenir a prática e responsabilizar seus perpetradores.

O especialista destacou como a vigilância preditiva — a partir do uso de novas tecnologias baseadas em algoritmos e inteligência artificial — já é uma realidade no policiamento em alguns países. Ele alertou para os riscos de aprofundamento da discriminação racial, por exemplo, devido a falhas de câmeras para captar e reconhecer imagens de pessoas de pele escura ou na coleta de dados enviesados. “O que os algoritmos refletem na prática é a realidade cotidiana. Ou seja, os algoritmos e a inteligência artificial não mudam a realidade. Em um contexto de desigualdades históricas, de racismo e discriminação racial, práticas reiteradas de perfilamento racial se refletem no desenho e na aplicação de tecnologias de inteligência artificial”, alertou Pastor.

O debate chamou a atenção para muitos pontos sensíveis que estão também contemplados em documentos das Nações Unidas sobre o tema. Participantes ressaltaram a necessidade das instituições reconhecerem e se sensibilizarem com o problema, assumindo o papel e a responsabilidade que têm com o perfilamento racial.

“Nas vésperas do dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, nós assistimos à morte de mais um corpo negro neste país”, lembrou Ieda Leal, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, sobre o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, brutalmente agredido por seguranças de um supermercado na noite do último dia 19 de novembro e veio a óbito em seguida, em Porto Alegre.

“Ele não é o último, porque 23 minutos depois daquela morte aconteceram outras. Precisamos reagir ao racismo, ter acesso aos dados.” Ela também reforçou a importância de pessoas negras ocuparem as mais variadas posições no sistema de justiça e participarem das tomadas de decisões para combater o racismo estrutural e institucional.

O monitoramento e controle da atividade policial foi também extensivamente abordado no debate, com destaque para a importância da coleta adequada de dados sobre raça e cor em relação às abordagens e atividades policiais. Essa foi uma das boas práticas, atualmente em curso no Reino Unido, citadas por Sandra Aragón, oficial da ONU Direitos Humanos.

Organizações da sociedade civil reforçaram a relevância de se ouvir e visibilizar as narrativas e relatos das pessoas afetadas pelo perfilamento racial e suas famílias, para construir estratégias eficazes de combate à prática. “Uma das consequências da aplicação do perfilamento racial é que é ineficaz e contraproducente, não facilitando a colaboração entre a comunidade e a polícia”, ressalta Sandra.

O debate demonstrou que ainda há uma série de desafios pela frente mas já há mudanças em curso, como apontou Pastor: “Hoje, mais do que nunca, o mundo, a comunidade internacional, as cidadãs e os cidadãos comuns, entendem que existe um problema e que ele não está distante. Essa é uma mudança importante. É um passo adiante.”

DÉCADA INTERNACIONAL DE AFRODESCENDENTES – A Década Internacional de Afrodescendentes foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas para o período de 2015 a 2024. O ano de 2020 marca cinco anos desse esforço de cooperação nacional, regional e internacional para a promoção dos direitos humanos das pessoas afrodescendentes pelo mundo, no espírito do reconhecimento, justiça e desenvolvimento.

A ONU Direitos Humanos tem dedicado diversas atividades ao eixo de justiça, incluindo a temática de perfilamento racial. Além da publicação “Prevenindo e Combatendo o Perfilamento Racial de Pessoas Afrodescendentes: Boas Práticas e Desafios”, o Alto Comissariado também está elaborando um relatório sobre violência contra afrodescendentes perpetradas por agentes de segurança, a pedido do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Resolução 43/1).

Foto destaque: Ana Paula Oliveira, do grupo Mães de Manguinhos, teve o filho Johnatha assassinado aos 19 anos com um tiro nas costas – Acervo pessoal